Você já arrumou o gravador? Já posso começar? Bom, me desculpe o
nervosismo, mas nunca tinha feito isso antes. Não que eu não desejasse, mas
sempre fiquei receoso. Ficava até receoso de dizer receoso e não receosa. Mas acho
que já posso falar assim, como sujeito homem. Engraçado, sujeito homem era
sempre como meu pai se referia aos amigos e eu sempre alimentei, bem lá no
fundo, uma vontade de ouvi-lo me chamar assim também. Que Deus o tenha ou
Lucífer, sei lá. Não cabe a mim adivinhar quem o recebeu depois de morto. Tá,
tudo bem, vou tentar começar do início, é porque é difícil para minha pessoa
saber exatamente quando foi que eu me reinicei, apaguei meus velhos arquivos e
escolhi novos programas. Sei que minha história passa ao longe da Branca de
Neve, mas o espelho sempre foi um personagem fundamental. Era amor e ódio. E isso é muito
difícil. Os espelhos estão em todos os lugares e são muitos. Experimenta ir num
shopping ou até mesmo se refrescar nos banheiros... Era um verdadeiro martírio.
Por isso sempre preferi os banheiros dos postos de gasolina, pois, ainda que
ardidos de urina, era um alívio que nas paredes só pudesse ver o encardido dos azulejos.
Cresci assim, a fugir dos espelhos, porque acreditava que podia me refugiar na
imagem que havia criado em meus sonhos. Nada disso era explícito, raramente as
pessoas percebiam, mas também, raramente me percebiam. Tinha umas coleguinhas
da escola que diziam, vem cá menina, vem botar um batom. Eu ia e não ia. Ficava de
frente a bancada, enquanto elas passavam e olhava para frente sem que na frente
nada existisse. As amiguinhas, ah, as amiguinhas, quem será que as inventou? Por
mim, pegava naqueles pescoços delgados e torcia feito mainha ao matar a galinha
de domingo. Na hora dos esportes, então, era um drama. Nunca tinha sido convocada
para as danças que eram ridiculamente espalhafatosas naqueles shows de ginásio
de esporte. Ah, você quer saber por que eu falo convocada e não convocado. Me perco
no meu próprio passado, como nele eu era perdido. Mas qualquer coisa você revisa
no editorial. Regula os pronomes. Aproveita e ajeita também meu português que é
pra ver se combina com o talho desse uniforme. Eu ainda tou me adaptando. Hahahha.
Adaptando, parece que vivo a me adaptar. Quando não é uma coisa é outra. Só sei
que a escola me matou. Matou pedaços dentro de mim como nem minha família, até
então, tinha conseguido, pois em casa eu brincava de menino invisível, e nunca
nenhum deles me viu. Sabe aquelas brincadeiras que não custam nada, não dependem
dos brinquedos que você ganha e do qual nenhum era o que tinha sonhado?! Bem,
era assim mesmo. Dia das crianças, então, nada de ficar feliz. Era apenas um
rosto amarelo, não, não havia sorriso, desembrulhando bonecas das mais variadas
e olhando de esguelha para os joguinhos dos vizinhos. Ingrata, era assim que me
chamavam e tudo que eu queria era uma bicicleta pra virar bicho solto no mundo.
No natal, ganhei uma Sissi, dessas róseas, com direito a cestinha e tudo. Ia passear
com as colegas. Uma vez ela disse, seu braço é estranho, parece que tem
músculos, parece braço de menino. O nome dela era Marina e eu me vi
perdidamente apaixonado. Marina era linda, morena, toda pintada, olho agateado,
sorriso fácil, maneiras bruscas. Costumava ser a megera da escola, tão clichê
isso, mas eu a seguia assim mesmo, seguia como se tivesse sido adestrado. Jogava
os jogos que ela queria, as brincadeiras que escolhia, carregava suas tralhas,
ousava passar do seu perfume, só para lembrar o cheiro dela. Até o dia que
Carlos, em meio à sala toda, disse que eu era sapata e que queria Marina só pra
mim. Até hoje me lembro das risadas. E eu, ali, abobalhado, sem saber o que era
sapata. Mas desse dia em diante, só usei sandálias de dedo. Marina ficou pra
trás e eu já não sonhava com ela, mas sonhava em ser ela, sonhava até em, sendo
ela, estar com Carlos. Me odiava por isso, e comecei a odiar também os sonhos,
assim como os espelhos. Já não queria
mais ir à escola e estando lá me refugiava nos livros até o dia em que pude ir
embora. Na faculdade, entrei no curso de línguas. Queria aprender a falar todas
elas e enquanto isso me calava no português. Não tinha interesse. Queria ir pra
bem longe. Não sabia que ia voltar e que hoje ia falar com você. Que ironia,
não? No mundo conheci pessoas como eu, sem cara, sem rostidade, aprendi
conceitos, fiz oficinas de filosofia, vi que ser estranho era capital simbólico
nas grandes cidades. Foi quando eu decidi mudar, depois de assistir aquele
filme, aquele que o rapaz colecionava pele de moças. Como era o nome...? O
silêncio dos inocentes. Queria uma nova pele. Uma pele que pudesse encarar o
espelho e podar seus pêlos. Me inscrevi em programas públicos, mandei emails,
mandei cartas, preenchi arquivos, fiz séculos de terapia, só nunca falei
daquele filme. Participei de grupos de solidariedade de gordos. Ora, por que
fiz isso? Eles também queriam arrancar pedaços de si. Me identifiquei com os
androides, participei de debates sobre androginia, sobre os queers e a leva
toda. Enquanto isso me envolvia com uns e outras. Até que a encontrei. Dra.
Frankie Stein, tão século XIX, tão
século XXI. Ela topou fazer a transferência. E assim, me transferi para outro
corpo. Um corpo de pronomes próprios. Foi até divertido servir de modelo para
suas experiências. Claro que eu gostava dela, nunca a quis mal. Não fique
ansioso, já digo... mas é tão óbvio porque a matei, porque não poderia ser
diferente... ela era a memória de quem eu fui antes. Com ela, eu não teria
pertencimento. E, por favor, quando você concluir, não coloque o nome que me
deram ao nascer, mas o que me deram nos jornais, sim, meu nome é Palimp VI, o
único presente que me deram e que eu quis que fosse m---eu.
Gostei muito do seu texto. Aí vai um segundo presente:a dia para ler "Viagem Solitária" - Memórias de um transexual 30 anos depois. Sim, sou o autor, o transhomem que também odiava espelhos, esperando que eles pensassem sempre antes de refletir. Gostaria muito de ouvir sua opinião.
ResponderExcluirBeijos e se quiser, me adiciona no facebook,
Adorei!
ResponderExcluirPessoas mudam, memórias não.
Texto maravilhoso!!!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirUma leitura instigante. Uma delícia!
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