segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Seu José


Seu José já fora casado 2x. Nas vezes todas, saiu da casa inteira que não sentia ser seu lar, sem eira nem beira, a ficar dormindo e comendo naquele corsinha preto, dos anos antigos, porém ainda não uma relíquia, cujo emplacamento nem valia o pago, poderia ser recolhido, como recolhido ele ficava a comer pão com manteiga naqueles bancos surrados, cujas marcas dos restos de cimentos, o tivesse sementado ali mesmo.

O curioso de tudo era que Seu José era mestre de obras e entre um cochilo e outro naqueles bancos suados e completamente empoeirados, ao despertar ficava a construir a casa dos muitos de todos os outros. Caprichoso que só ele, era atento aos detalhes, sorridente e solícito, apesar de suas opiniões fortes, pois até hoje acredita ter sido o Collor o melhor dos presidentes. Deve ser dessas coisas de quem lida com tanta tinta e transfigura os sentidos. Não o julguemos, afinal, quem somos diante de Seu José?

Franzino como um passarinho com sete bicos na coluna, não acreditava quando o via levantar tanto peso, se negar a engolir qualquer cachete, porque era das flores, das ervas, da natureza. Os que o viam, pensavam logo (ou não), que máquina azeitada, quando ele era apenas transespécie. Spinoza o adoraria e Seu José riria dele, pois, tampouco, Spinoza o compreenderia. Ele era das vivências, das outridades radicais. Era pessoa.

O causo era que Seu José, sabe lá de que Deus veio (graças) ou se seu pai era, costumeiramente, quiçá seu filho, estivesse no limiar da construção da casa dos outros, quando nem telhado tinha. Sesese, se seu carro ainda fosse daqueles de teto solar, poderia encontrar as estrelas, vislumbrando as várias fases da lua e talvez pudesse escolher a do seu melhor agrado.

Um dia, Seu José, pernoitando no posto de gasolina em que escostara seu corpo-corsa-casa, foi tido como testemunha de Z mortes. Se não fosse o reflexo incandescente daquela foice mortífera, iluminada que era pelos artifícios da natureza, refletindo em suas vistas, lhe deixando sem ver por instantes, tivesse visto pelas mãos ou em primeira mão, a hora da mortandade toda, estivesse ainda morando e comendo sobre as rodas. O acontecido foi singular, como singular são as coisas das diferenças, pois o mesmo brilho da lâmina que o cegou e lhe fez não ver, continuou resguardado até o dia seguinte, quando o pipocar dos flashes das câmeras desse noticiário que goza com cheiro de sangue, lhe devolveram as vistas.

Repórteres, curiosos, polícia, entre os outros Z, o fizeram sair do que antes lhe servia como seu entreposto. E posto assim, tirou uns dias, já com a visão descomprometida e foi ser mestre de si mesmo. Alicerçou um pedaço de terra, usou ferro para dar fundamento e prosperidade, ergueu com tijolos e argamassas paredes esmeradas e da sua sobre-vivência e saberes, fez daquele pedaço de chão uma das suas construções mais lindas, como me contou.

Da janela do norte, vislumbrava a via láctea, do sul, vinha a melodia do mar, do oeste, o cheiro de suas ervas e do leste, a sua entrada e daqueles que ele queria junto a si. Eram borboletas, beija-flores, mulheres de saias rendadas, corsas a correrem no jardim, joaninhas, abraços, beijos, esfregões. Assim, a morte Z virou lembrança e esquecimento, ainda que gerasse muitos risos quando se propunha a narrar sua vivência.

Obrigada, Seu José, por me falar dos seus caminhos e descaminhos. Como você mesmo me disse, não sou homem sem passado e futuro e para isso são necessárias as fundações daquelas do nosso próprio.