Costumava dizer, quando pequena,
que ela era minha mãe de chocolate, enquanto ela me dizia - Deus me deu uma filha
de leite, enviada como um presente todo especial por Nossa Senhora. Não tinha o
hábito de chamá-la de senhora, tampouco ela gostava, ainda se sentia leve
apesar do peso dos anos. Morávamos numa cidade pequena, cujos gracejos, pela
inclemência da quentura, era chamada de Morada do Sol. Nas lides da vida, o
leite da minha pele, virou pingado e, assim, me avizinhava mais com aquela que
me ensinou a nadar nos açudes aos pés dos lajeiros.
Não erámos apenas nós duas,
os agregados, os filhotes e os vizinhos sempre estavam a habitar a sombra que
nosso teto ofertava, quente e cheiroso de café. Um dia caiu de virmos para
cidade grande, já não era nos açudes que brincávamos na liquidez de tanta água.
E o sol, esse ainda companhia das nossas peles, parecia melhor parceiro,
diante dessa água sem horizonte. Apegada que era aos meus caminhos já sem
vistas, sentia vontades de retorno. Ela não, ela, toda aventureira, pegava as
ondas como se fossem as pérolas de uma vida inteira e dizia: um dia, ainda em
dezembro, desse mar, chego ao Rio.
Mas foi em Janeiro que
ela se apoiou em meus braços quando a levei, caída, ao hospital. De hospital em
hospital, íamos sendo transferidas, como uma carga qualquer, sem plástico-bolha,
sem o carimbo das entregas preciosas, a ocupar corredores, ouvindo o
refrão de uma música maldita, não temos leito, não temos pino, não temos médicos.
Enquanto ela nos meus
braços se apoiava, a abraçava como se nosso corpo junto fizesse a mais gostosa
das combinações. Meu corpo leite, pingado de café, ela toda chocolate, nos
marinando juntas. A multidão, que também estava à deriva, naquela maquinaria
tão gélida, sentiu o sol na nossa pele e se aproximava para, talvez, se banhar. Indagaram-me muito, vendo a mistura das cores, quem é ela? Ela,
eu dizia, foi um presente divino, enviado para adocicar a vida, minha mãe, e
esse foi o último de seus sorrisos que tive o prazer de guardar em mim. Alguns poucos dos muitos sem jaleco, ocupando a esterilidade daquele corredor, perguntavam se estávamos precisando de algo,
quando, na urgência daquele tsunami, respondi, numa voz surda, que num coro
interno, reverberou em uníssono na multidão, por favor, (mais) médicos.
Ps. Janeiro se aproxima
e um dia irei ao Rio, levá-la comigo, porque ela ainda habita minha pele. Sem mais.