Ela, todo dia,
tinha que acordar ainda com o céu escuro. Nos finais de semana, quando não dava
plantão, isso não a incomodava, mas estava cansada de ter que acordar, arrumar
o rosto e os cabelos, pegar um dos manequins que tanto lutava para poder manter,
porque senão a despedida desse ritual era a do seu trabalho. Engolia seis dedos
do café já feito ontem para não perder do seu cotidiano a carona da empresa. E
todos diziam, ela até se convencia, como era uma dona de sorte, já que nunca
pudera ter seu próprio automativo.
A maquiagem que
usava para poder esconder seus bigodes chineses, rugas e outras coisinhas,
pesava muito em seu rosto, principalmente, quando a luz das filmagens parecia
derrete-la toda. Foram anos e anos assim, uns 6 x 3, no mínimo. Contava ela do
tempo, das nuvens, das trovoadas, das secas, das queimadas para os que a
assistiam, e contava para ela mesma o tempo que ainda precisaria estar lá, naquele
sorriso congelado que alguns atribuíam a botox e outros a drogas psicóticas. Mas
não havia nada disso, não totalmente, porque quando ela ensaiava no seu espelho
retro do banheiro, conseguia antever que por baixo dos lábios, entrando boca
adentro, e apertando sua garganta, o riso saia do seu esôfago já adoentado de
nervoso.
Esse compromisso não
podia faltar. A tensão se dissipava um tanto quando ao entrar na van da empresa
o motorista, Seu Expedito, que parecia ter nascido no mesmo tempo da empresa,
tirava do bolso de sua camisa de sarja um botão de rosa, sempre dizendo - uma
rosa para uma rosa, que ela, ao chegar em casa, guardava entre as páginas de
algum dos seus livros. Outros diziam quando entravam na van, eita, chegou a
famosa bonitona da emissora. E daí ela já ia ensaiando o sorriso que aparecia do
fora, porque no dentro, já havia tomado uma pastilha de magnésio em cada uma
das paradas.
A roupa escolhida
para aquele dia havia sido um scarpin, cujos sapatos eram de corte talhada,
quase um chanelzinho, desses que a pessoa compra quando vai num brechó fora das
terras onde nascera. Ou o contrário, não sabemos ao certo.
Na emissora, ela
pegou o boletim, ainda olhando e pensando que sempre quisera ser uma
comentarista política, mas há 6 x 3 estava ali, lendo sobre as nuvens nas suas
fúrias e nas suas ausências.
Mais 2 anos, mais
2 anos, mais 2 anos... e poderia, quem sabe, cavalgar as nuvens, bem para
longe, ainda que esse longe fosse dobrar apenas 2 quarteirões.
Geralmente o
quadro televisivo que apresentava ficava quase no final do programa. Um dos engraçadinhos
que a entediavam ao chamá-la de dona do tempo, como se ela fosse eterna ou
apenas um relance efêmero, anunciou o resultado da votação da reforma
trabalhista. Ela sorriu como nunca, daqueles sorrisos paralisados, pois sabia
que nem na teoria existiria mais a conta dos 2. Disseram a ela, você brilhou
como nunca, enquanto ela se desarmava do seu tailleur cinza e seu batom nude.
Ao ir ao encontro
da van, percebeu que Seu Expedito não estava ao volante. Pela primeira e, quiçá,
pela última vez, se inclinou para trás, perguntando por Seu Expedito. O rapazote
das relações humanas disse, Seu Expedito foi despedido. Era muito antigo e o
salário já agregava muito valor. A dona do tempo indagou “antigo”? “salário de
motorista que agrega valor”? Ele era gente, enquanto os outros que assim o
decidiram contavam os seus metais.
Ao chegar em casa
foi direto ao escritório guardar o botão de rosa em um dos seus livros. No
primeiro que abriu já haviam 2 botões. Foi tirando um por uma das estantes enquanto
o esôfago gritava molhando tudo ao derredor. O chão ficou revestido de livros,
páginas descoladas, folhas rasgadas, lacrimadas, vomitadas, pisadas, etc.
Curiosamente, nenhum dos botões de rosa, ressecadas pelo tempo daquela que não
se achava dona de nada, haviam se maculado.
Ela conseguiu
coletar todos os botões e colocar numa bela caixa das coisas preciosas, o pouco
de dinheiro de sua vida toda e seu passaporte. O tempo dela e de Seu Expedito
não existia mais, mas foi com aquela caixa que ela partiu, levando seu batom
roxo, shorts e camisetas. Os scarpins também foram destruídos tal como tudo que
não servia mais. Já em terras estrangeiras, percebeu que agora, sim, era dona
do tempo, do seu tempo, cuja mudança parecia ter subtraído da sua vida, do seu
corpo, do seu rosto, esôfago, lábios, garganta a conta de 3 x 6, pois foi isso
que ao trespassar sua pessoa, produziu a sensação de que naquela altura atravessava
nuvens que pareciam um jardim de rosas.