domingo, 26 de setembro de 2021

A Dona do Tempo

 

Ela, todo dia, tinha que acordar ainda com o céu escuro. Nos finais de semana, quando não dava plantão, isso não a incomodava, mas estava cansada de ter que acordar, arrumar o rosto e os cabelos, pegar um dos manequins que tanto lutava para poder manter, porque senão a despedida desse ritual era a do seu trabalho. Engolia seis dedos do café já feito ontem para não perder do seu cotidiano a carona da empresa. E todos diziam, ela até se convencia, como era uma dona de sorte, já que nunca pudera ter seu próprio automativo.

A maquiagem que usava para poder esconder seus bigodes chineses, rugas e outras coisinhas, pesava muito em seu rosto, principalmente, quando a luz das filmagens parecia derrete-la toda. Foram anos e anos assim, uns 6 x 3, no mínimo. Contava ela do tempo, das nuvens, das trovoadas, das secas, das queimadas para os que a assistiam, e contava para ela mesma o tempo que ainda precisaria estar lá, naquele sorriso congelado que alguns atribuíam a botox e outros a drogas psicóticas. Mas não havia nada disso, não totalmente, porque quando ela ensaiava no seu espelho retro do banheiro, conseguia antever que por baixo dos lábios, entrando boca adentro, e apertando sua garganta, o riso saia do seu esôfago já adoentado de nervoso.

Esse compromisso não podia faltar. A tensão se dissipava um tanto quando ao entrar na van da empresa o motorista, Seu Expedito, que parecia ter nascido no mesmo tempo da empresa, tirava do bolso de sua camisa de sarja um botão de rosa, sempre dizendo - uma rosa para uma rosa, que ela, ao chegar em casa, guardava entre as páginas de algum dos seus livros. Outros diziam quando entravam na van, eita, chegou a famosa bonitona da emissora. E daí ela já ia ensaiando o sorriso que aparecia do fora, porque no dentro, já havia tomado uma pastilha de magnésio em cada uma das paradas.

A roupa escolhida para aquele dia havia sido um scarpin, cujos sapatos eram de corte talhada, quase um chanelzinho, desses que a pessoa compra quando vai num brechó fora das terras onde nascera. Ou o contrário, não sabemos ao certo.

Na emissora, ela pegou o boletim, ainda olhando e pensando que sempre quisera ser uma comentarista política, mas há 6 x 3 estava ali, lendo sobre as nuvens nas suas fúrias e nas suas ausências.

Mais 2 anos, mais 2 anos, mais 2 anos... e poderia, quem sabe, cavalgar as nuvens, bem para longe, ainda que esse longe fosse dobrar apenas 2 quarteirões.

Geralmente o quadro televisivo que apresentava ficava quase no final do programa. Um dos engraçadinhos que a entediavam ao chamá-la de dona do tempo, como se ela fosse eterna ou apenas um relance efêmero, anunciou o resultado da votação da reforma trabalhista. Ela sorriu como nunca, daqueles sorrisos paralisados, pois sabia que nem na teoria existiria mais a conta dos 2. Disseram a ela, você brilhou como nunca, enquanto ela se desarmava do seu tailleur cinza e seu batom nude.

Ao ir ao encontro da van, percebeu que Seu Expedito não estava ao volante. Pela primeira e, quiçá, pela última vez, se inclinou para trás, perguntando por Seu Expedito. O rapazote das relações humanas disse, Seu Expedito foi despedido. Era muito antigo e o salário já agregava muito valor. A dona do tempo indagou “antigo”? “salário de motorista que agrega valor”? Ele era gente, enquanto os outros que assim o decidiram contavam os seus metais.

Ao chegar em casa foi direto ao escritório guardar o botão de rosa em um dos seus livros. No primeiro que abriu já haviam 2 botões. Foi tirando um por uma das estantes enquanto o esôfago gritava molhando tudo ao derredor. O chão ficou revestido de livros, páginas descoladas, folhas rasgadas, lacrimadas, vomitadas, pisadas, etc. Curiosamente, nenhum dos botões de rosa, ressecadas pelo tempo daquela que não se achava dona de nada, haviam se maculado.

Ela conseguiu coletar todos os botões e colocar numa bela caixa das coisas preciosas, o pouco de dinheiro de sua vida toda e seu passaporte. O tempo dela e de Seu Expedito não existia mais, mas foi com aquela caixa que ela partiu, levando seu batom roxo, shorts e camisetas. Os scarpins também foram destruídos tal como tudo que não servia mais. Já em terras estrangeiras, percebeu que agora, sim, era dona do tempo, do seu tempo, cuja mudança parecia ter subtraído da sua vida, do seu corpo, do seu rosto, esôfago, lábios, garganta a conta de 3 x 6, pois foi isso que ao trespassar sua pessoa, produziu a sensação de que naquela altura atravessava nuvens que pareciam um jardim de rosas.