sábado, 16 de outubro de 2021

Das teresadas


 - Teresinha, você já deu de comer a uma banana?

- Como assim?

- Bem assim, abre a banana com lápis grafite, como me disseram, e mete com coisa dentro. Já pensou? É como se ela tivesse um flash?

- Num é só descascar? Teresinha pergunta.

Tampouco. Algumas feridas não podem ser curadas. Os flashes são nada. Dito isso, ela continuou alimentando a banana, se desfazendo do passado, à espera que o presente já lhe chegue maduro, amarelo, saboroso, nutritivo e reconfortante.

- Tô é morta com essa história; no tempo que ele veio de lá, do mundo de suas fugas e jogatinas outras, capturando o papo no ou ao meio, dizendo: - Isso é o que dá, dar de comer a uma banana.

- Puff(e).

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Mordida Z


  • A gente fica mordido, com medo de traspassar, como diz a música. Como queria poder morder, mordendo, de lado, de frente, nas costas, perpassando tudo. Me mordi tanto, que morri no processo. Me mordi, quando já não tinha a casa dos meus dias. Me mordi quando minhas filhas casaram e se foram, sem ao menos ligarem no ínterim de seis meses. Me mordi. Me mordi, quando um parente ficou à mercê de uma intubação, durante meses, sem saber se ia ou vinha. Me mordi, quando liguei a tv e vi o tanto que não fizeram para que fôssemos vacinados numa pandemia mortífera, expressando apenas fundamentalismos perversos e interesseiros na moeda do tempo. Me mordi, quando vi que já não podia trabalhar; me mordi, quando vi que estava falida, falhando. Me mordi, nas crises psicóticas que tive em meio a tudo isso. Me mordi, ficando toda mordida. Como morri, aos poucos, pelas mordidas ditas e pelas que me assusto e me envergonho de dizer. Morri, no tempo da batida de Nina Simone, ao piano, batendo nas teclas, tão brancas e tão pretas, dizendo “Ain´t Got No, I Got Life”, ao dizer que não tinha comida, não tinha governo, não tinha sanidade, não aguentava mais, não aguentava ter que pedir de porta em porta um punhado de feijão ou cuscuz, não suportava mais voltar sem nada para casa; não suportava a dor na minha mão queimada por tentar cozinhar com álcool, não me interessava a vida vivida de dia a dia...

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    Ouvi tudo isso numa ligação dentro do ônibus que pegara para encontrar os meus amores, numa festa pós-pandêmica (?), ao mesmo tempo que lembrava da Nina cantando “não tenho mais vida” e depois ensinando, rodeada pelos seus, suas panteras negras, sorrindo ao cantar também, “tenho minha vida, minha mente, meus cabelos...”. Depois do todo ouvido, percebi que no hoje não é não tenho, mas I got life and love. Sinto por todos que falam e vivem assim nos transportes da vida e que não conquistaram ainda não possuam seus dentes e não possam se morder também em meio a tanto apertamento.

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Vida dentro do arco-íris

Um dia terei um barquinho próprio, como um cantinho colorido, bem arco-íris. Nesse dia, já terei uma remuneração como os nossos pais, daqueles dos outroras, quando meu lugar era do fora da fome, e vou poder passar uns 20 anos pagando, de pouco a pouco, o programa do barco para chamar de meu e seu. E não terei medo, o sol cozinhará meu almoço, minha irmã estará lá, minha mãe, minhas amigas, com a bancada aparecida toda farta para todos, porque sei que o mar, todo amar em sua empatia para os todos, molhará o chão do barco com a sua fartura toda. Teremos peixe, algas, mariscos, de todas as coisas tão parecidas. Nele sei que cantaremos juntos, que alguém pegará um violão, outro um ukulele, outro um bongo, mais alguém um triângulo... quem souber tocar, nos tocaremos, quem não souber, recitará algo de seu, ainda que feito por outro ou por si. Assim, teremos a vida do lado bom também. Nunca mais precisarei, eu ou outra de mim, atravessar as areias da praia, porque estarei nos braços já de Iemanjá, não mais com um saco de lixo recolhendo e me dizendo sorte, encontrei latas para trocar por 7 reais, quando precisaria de um cento e vinte para um gás, pois ainda não tenho meu barco, tendo filhas me esperando na casa para um cozido, quando o próprio sol cozinha muito mais. Cabeça quente, o lenço já não protege. Assim, hoje, apenas, hoje, levarei para casa o que consegui para o botijão e a imagem daquele barquinho, verde, branco, azul, vermelho, com que sonho que seja o meu próprio, dos dentros dos arco-íris. Meus olhos não serão mais marejados, apenas mareados e assim, meu saco de latas, será a botija dos meus dias.