quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Mordida Z


  • A gente fica mordido, com medo de traspassar, como diz a música. Como queria poder morder, mordendo, de lado, de frente, nas costas, perpassando tudo. Me mordi tanto, que morri no processo. Me mordi, quando já não tinha a casa dos meus dias. Me mordi quando minhas filhas casaram e se foram, sem ao menos ligarem no ínterim de seis meses. Me mordi. Me mordi, quando um parente ficou à mercê de uma intubação, durante meses, sem saber se ia ou vinha. Me mordi, quando liguei a tv e vi o tanto que não fizeram para que fôssemos vacinados numa pandemia mortífera, expressando apenas fundamentalismos perversos e interesseiros na moeda do tempo. Me mordi, quando vi que já não podia trabalhar; me mordi, quando vi que estava falida, falhando. Me mordi, nas crises psicóticas que tive em meio a tudo isso. Me mordi, ficando toda mordida. Como morri, aos poucos, pelas mordidas ditas e pelas que me assusto e me envergonho de dizer. Morri, no tempo da batida de Nina Simone, ao piano, batendo nas teclas, tão brancas e tão pretas, dizendo “Ain´t Got No, I Got Life”, ao dizer que não tinha comida, não tinha governo, não tinha sanidade, não aguentava mais, não aguentava ter que pedir de porta em porta um punhado de feijão ou cuscuz, não suportava mais voltar sem nada para casa; não suportava a dor na minha mão queimada por tentar cozinhar com álcool, não me interessava a vida vivida de dia a dia...

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    Ouvi tudo isso numa ligação dentro do ônibus que pegara para encontrar os meus amores, numa festa pós-pandêmica (?), ao mesmo tempo que lembrava da Nina cantando “não tenho mais vida” e depois ensinando, rodeada pelos seus, suas panteras negras, sorrindo ao cantar também, “tenho minha vida, minha mente, meus cabelos...”. Depois do todo ouvido, percebi que no hoje não é não tenho, mas I got life and love. Sinto por todos que falam e vivem assim nos transportes da vida e que não conquistaram ainda não possuam seus dentes e não possam se morder também em meio a tanto apertamento.

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