Era o início dos anos 50 e eu já
beirava os 30 anos, moço solteiro, de posses, tinha gado, tinha terras e muitos
irmãos para cuidar. Muitos diziam que eu era o partido da cidade e as moças das
vizinhanças não me deixavam esquecê-lo.
Era o braço direito do meu pai, senhor
distinto, cujas duas mulheres fizeram igualmente parte da minha vida, ainda que
ao longe: a esposa, minha mãe, sobrinha do meu pai, morava na casa grande da
cidade, e a amante esquentava seus dias frios ao pé da serra no Trapiá, sem
deixar também de me dar alguns irmãos. Éramos muitos então, mas só eu fiquei.
As irmãs e os irmãos seguiram o caminho das letras, foram ser doutores nas
cidades grandes e eu ali, a cuidar dos afazeres da lida do leite, do capim a
ser plantado, do algodão a ser colhido, da seca a ser vencida, das cercas a
serem consertadas e do carvão a ser produzido. Apesar dessas mulheres, que ora
esbarrava nas salas de estar, vivia mesmo era rodeado de homens, trabalhadores
como eu, ainda que não tão distintos como meu pai. Ele morreu aos 77 anos e eu
sabia que viajaria nesse tempo também.
Não que eu soubesse do futuro, mas
sempre soube que meu tempo era de 77 anos, soube como se sabe que se houver
chuva no dia de São José, o milho será abundante e o campo de arroz será basto como
os cabelos de um anjo. Meu saber era de quem vivia o cotidiano e suas mazelas,
era de quem acreditava em Padim Cícero e Frei Damião, era de quem acreditava na
mística da vida.
Nunca fui de colocar álcool na goela,
cigarro nos pulmões ou adentrar em raparigas. Sabia que ela um dia chegaria e
seria a mãe dos meus filhos. Apesar de ouvir dizer que eram os tempos ouros do
rock and roll, escutava mesmo, ainda que trazido pelo vento das casas vizinhas,
as batidas do forró de zabumba, triângulo e sanfona, comuns nos encontros aos
pés da fogueira, quase em meio ao mato. Mas vibrava era com as cantigas
de boiadeiro, tangendo o gado e trovejando junto a eles: “tudo que o homem mais
necessita, é cavalo bom e dinheiro, saúde e mulher bonita”.
Logo não cuidava apenas dos negócios do
meu pai, já tinha os meus. Eram terras vizinhas e meu burro Chamurro, manso
como ele só e afeito às nossas trilhas, era o meu companheiro. Um dia o
negociei com um vizinho, troquei por uma novilha, mas o trouxeram antes que
raiassem dois sóis, pois ele, empacado, apenas chorava.
Chamurro sabia os caminhos todos e o
que fazer nos puxincóis, nas cancelas, nas porteiras, que ora pareciam separar
domínios, ora pareciam com as portas que dividem os vãos das nossas casas. Assim
como eu, Chamurro não gostava de pegar a estrada para a cidade. Mas também íamos,
especialmente nos dias de feira, das feiras de gado, negociar a vida, rever os
vizinhos e, quiçá, passear pelas calçadas da cidade. Não precisava ir muito
longe da minha casa para estar na rua, pois ela era no centro, dessas com
janelas que se travestiam de portas e nunca estavam fechadas. Da sala mesmo, na
cadeira de balanço, cumprimentava quem passava.
Não era desses que usava botas de couro
e esporas de aço. Por isso, meu caminhar nem era tão musical, mas não por isso
pouco firme. Usava minhas alpercatas de couro, calças e camisas de tergal e
gabardine, sempre com minha cabeça enfincada no meu chapéu panamá, já
conformado aos meus contornos. Mas era um homem simples, de gostos simples,
tido como muito justo. Não gostava de brigas, já tinha crescido sombreado pela
ameaça dos cangaceiros, dos tenentes e não mantinha laços estreitos com
coronéis.
Talvez por isso fosse tido como um bom
partido. Por isso e pelas minhas mãos, que eram delicadas e desenhadas,
pequenas até, afeitas não aos chicotes, mas aos cumprimentos. Não tardou muito
e eu noivei. Seu nome era Maria do Ceú, mas como toda pequena cidade, logo
começaram os cochichos, de que Maria do Céu não gostava do moço das mãos
delicadas. Tive dúvidas, pois sabia que a mulher com quem passaria os meus
dias, seria única e eterna, seria a mesma.
Num sábado de Aleluia, guardei, durante
todo o dia, um pouco do que me alimentava e na noite, com a mesa posta,
talheres, toalhas, vela acesa, rezei a Salve Rainha Até Nos Mostrai, desejoso
de saber se era com essa noiva que iria me casar, essa tão cochichada. Entrei nos
mistérios da vida e em transe, tive uma visão: estava na praça sentado ao lado
de Maria do Ceú, quando chegou uma aluna do Colégio Cristo Rei, toda colegial
na sua farda, dirigindo-se a mim, me tomando por entre as mãos e me levando a
dar voltas em torno da praça. Foi o meu primeiro baile. Ao fim desse passeio, tive
a certeza dos justos: é com ela que vou me casar.
Maria do Ceú me traiu com um outro, mas
o mal por si se destrói. E livre, vagueando ainda na companhia de Chamurro, por
entre as ruas e as alamedas do meu sertão, fiquei a esperar por ela, que me tirou
a dançar na praça do meu sonho. Esperei anos, esperei até uma década.
Mas um dia, enquanto na casa da cidade
estava, alguém bate à porta, moça franzina, que sob o uniforme de sua escola,
entrevi seios fartos, cintura fina e belas pernas torneadas. Fingindo prestar atenção,
ouvi meio sem escutar que trazia um documento para a Dra. Haidée, minha irmã, professora
daquela escola de freiras. A convidei para entrar, ela disse não, e foi, mas
não sem que eu acompanhasse o seu caminhar até as dobras de uma esquina.
Era ela e mais uma vez, ainda que ela não soubesse, era com ela que eu
iria casar. E foi nos braços dela, no seu colo, que aos 77 anos, viajando, morri
como meu pai, mas não sem deixar de viver essa bela simpatia que foi o meu
amor.