sexta-feira, 23 de março de 2012

"O tempo não pára"

Como todo cair da tarde, abrigado no seu quarto, ligava o seu dois em um, na FM de sua cidade. Havia acabado de ganhar um microsistem de sua mãe, como presente pelos quinze anos. Mais alguns presentes e já poderia virar um matusalém. Mas, ok. Não havia mesmo desejado, como tantos conhecidos, aquelas festas chatas, cheia de amigos-grifes. Não. Não saberia o que fazer numa delas. Também não queria parecer ressentido. Sempre tinha o risco de não ter onde colocar as mãos, que estavam enormes, mãos de lobisomen, peludas, mais pêlos do que seriam desejáveis, mais mãos do que também seriam desejáveis. Hã, porque não eram os seus trinta anos, quando poderia voltar ao tempo e se dar ao prazer de esquecer de lembrar e de lembrar de esquecer.

Enquanto era embalado pela água que caia friamente do chuveiro, o locutor anunciava o novo sucesso dele e de sua piscina cheia de ratos. Fechei o chuveiro, ainda não conhecia essa música. Paralisado. “Disparo contra o sol/ Sou forte, sou por acaso/ Minha metralhadora cheia de mágoas/ Eu sou um cara/ Cansado de correr/ Na direção contrária/ Sem pódio de chegada ou beijo de namorada/ Eu sou mais um cara”.

Já não conseguia sentir a água. O refrão disparava cartuchos naquele corpo magro. Sem muito a oferecer ao mundo. Sem sua piscina, mas imerso na solidão. Lembrando de quando o havia visto pela primeira vez. Tão velho, tão doce e forte. Tudo o que minhas mãos de lobisomen não poderiam alcançar, tudo o que elas mais desejavam. Voltou ao banho, rezando para que a chuva parasse, pois no domingo sempre haveria a possibilidade de vê-lo. Era dia de missa. Era o dia dos encontros. Não era dia para chuva. Definitivamente, não, gritava silenciosamente.

E sob o fino da garoa, saiu pela rua, com suas melhores vestes, coração acelerado, batido, pelo acaso. Enquanto o aguardava na lateral da Igreja, no beco dos prazeres, a voz ao longe do padre recitava seus fervores, mas essa era apenas uma voz ao longe. Meus ouvidos pressentiram seu cheiro e enquanto olhava de soslaio, aquele belo homem de tez morena e braços fortes, tão clichê, tão desejado.

Em segundos, estava no meio do beco, naquele beco que tinha, no seu meio, muitas moças a rodear-lhe. Sozinho esperava pelo aperto da paz. Meu desejo o tocaria, enquanto ficava escorado na grande porta lateral de Nossa Senhora da Guia. E assim fiquei. E assim ele veio, desejar-me paz, enquanto meu corpo entrava em guerra, meus dados rolavam e se revolviam.

Finda a missa, finda as moças, saímos, sem palavras. Fomos, como gatos, à procura de telhados, à procura de um abrigo. Como gatos, nos enroscamos, nos metemos, nos bolimos, amassando nossas vestes, nossos corpos, nossos gostos. E eu o toquei, senti aquele estranho em mim, lobisomen feito, bicho da noite, bicho ligeiro, voraz. Eu desconhecendo meu ventre enquanto conhecia o ventre dele.

Ele pediu, eu assenti, não sabendo mais quais eram os dados. Foi a primeira vez, sem conforto, bichado também.

Tonto e assustado volto ao meu quarto. Enquanto sintonizo meu presente e ainda mais tonto e assustado, escuto mais uma vez: “Eu vejo o futuro repetir o passado/ Eu vejo um museu de grandes novidades/ O tempo não pára/ Não pára, não, não pára”.

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