sábado, 24 de março de 2012

O silêncio alquebrado


Já se esquecera das vezes que procurava ouvir. E não tocava. Vasculhou o velho cemitério dos elétricos ultrapassados e encontrou seu antigo Nokia. Trocou o chip. Só podia ser aquela geringonça nova que não sabia usar.

Com o branquinho de lanterna aceso, fiquei a esperar seu toque polifônico. Nada. Ainda é cedo, olhando o relógio. Mas Ele já teria arrumado tempo para dar uma escapulida e ligar. Hum, bobagem. Vou ao computador, bulo nos arquivos, esqueço. Procuro organizar o armário, mas as roupas já estão meticulosamente arrumadas pelo formato e cor.

Folheio revistas, folheio livros, folheio a memória. Nada. Meu Deus já passa das cinco da tarde e nem mesmo comi, me lavei, saí para ver o mar. Deito. Ligo para uma amiga, mas não posso me demorar, Ele ainda pode ligar.

Trimmmm.... Desligo rapidamente o celular e encerro o tricô com a amiga, pulando da cama, era Pedro. Gostava de Pedro, mas não era sua voz que queria ouvir. Desligo, um tanto grosseiramente. Sinto mais peso. Assim não é justo.

Tic tac, tic tac, tic tac... O relógio soa no meu corpo. Não suporto mais. Tudo por causa dela, é só ela chegar e Ele me esquece, some com sua voz, com seu dengo, com seu sorriso, some com sua necessidade de mim. E eu fico tremendo, tremo de solidão, tremo de saudade, tremo de rancor, solapando todo meu ser. Tonta, não resisto mais. E ligo, ligo, ligo... Ele não me atende.

Ouço novamente o som do telefone. É Pedro, mais uma vez, queixoso, amargurado, pedindo explicações, pedindo a mim, ao mesmo tempo em que diz não me querer mais. Alongo-me um pouco, desta vez. Procuro não ser a mesma que Ele, quando me ignora. Mas é Ele que desejo, que sempre quis, que já tive. Em Pedro, panos quentes, falo do meu carinho e do meu desejo, mas enquanto falo, penso Nele que ainda não me ligou, Nele que ignorou meu chamado, Nele que eu amo. Pedro me quer por inteira, Ele não me quer assim. Pedro pede para ir ao meu apartamento, digo que estou indisposta, com trabalho, arrumando a casa, digo muito. Pedro insiste furioso, porém, desolado.  Mas como aceitar o chamado de Pedro, se ainda ressoava as palavras que ouvira ontem.

Ontem, quando saí do carro Dele ouvi as mais belas palavras. Que ia sentir minha falta, que o coração doía já de saudade, que me amava, que eu era seu doce, que não queria que ela viesse, mas não soube como declinar. Bebi vorazes as palavras, mas palavras são palavras. Quero, perto de mim, Aquele que anuncia a doçura do mundo. Quero ao meu lado, na cama, na cozinha, no carro, no meu corpo.

A fome me ronda. Os vizinhos começam de novo a brigar. Acusações, ciúmes, tapas. Fecho as janelas. Acabrunho-me nos meus lençóis. E finalmente Ele liga. O som era de quem estava no banheiro, sua voz ressoava nos azulejos. Disse estar num restaurante com ela. E eu aqui esperando um convite. Perguntou se já havia me alimentado, se desejava um delivery, qualquer serviço de entrega. Puta que pariu, disse. Seu canalha, minha fome é de você. Só agora me liga. Esquece-me toda vez que ela chega. Estão comemorando o emprego novo? Ela vem morar com você? Nessa altura, só existe silêncio nos azulejos e minha voz continua, continua, continua, ora embargada, ora exaltada. Assim não dá, diz Ele, e desliga.

Olho aos lados e não vejo nada. É tudo vermelho. Tudo amargo. Desespero-me, me arrependendo do dito e ainda querendo dizer mais, querendo dizer que nunca mais me chame de doce, que nunca mais me procure, que suma da minha vida, que, por favor, volte pra mim, deixe ela, venha aos meus braços, me deixe acarinhar seu cachos castanhos, sentir seu sorriso pelas mãos, seu peso sob meu corpo. Meu doce na sua boca.

Choro. Giro sob mim. Pego todos os aparelhos de telefone e quebro-os no chão. Não me aquietou. Agora, um silêncio alquebrado. Faço um chá, tomo um calmante e caminho por todo meu apartamento, ainda com a camisola de ontem.

Mais calma, me banho, coloco hidratantes nos pés e fico quietinha esperando o efeito da calmaria, da resignação, do apaziguamento. O interfone toca. Meio tonta, coração palpitando, vou rapidamente atendê-lo. Era Pedro. Trouxe remédio para minha dor de cabeça, que ia me ajudar nos trabalhos acumulados, que ia fazer a faxina no caos do meu apartamento. Era Pedro. Deixe-o entrar, convidei para dormir ao meu lado, apenas dormir, pois com ele não posso ser inteira, o outro é minha metade.

Dias depois, Pedro ainda estava comigo, mas de saída. Fiquei aliviada com o silêncio que agora me invadiria. Despediu-se ao pôr do sol e ao sair do prédio, viu em frente um sedã cinza, com alguém a olhar para a sacada do primeiro andar, o celular sob o ouvido, discando insistentemente, mas ainda calado. Pedro entrou em seu carro, sorriu feliz, e foi-se, lembrando que na sua faxina, havia jogado fora os restos dos aparelhos telefônicos. 

Um comentário:

  1. Senti o sussurro de cada palavra dita e das imagens que ecoavam em minha mente. Brutas palavras, derradeiras imagens. Reconheço-as no não dito, mas que faz meu corpo tremer de tanto que as sinto na alma. Este doce amargo veneno. Sei quem bebe e dele bebo também. Você é uma devoradora de almas.

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