Hoje
estou velha, muito velha. Começou assim seu discurso como paraninfa da última
turma de formandos daquela escola de freiras em que tinha ensinado mais de meio
século, estudado uma década. Muitos de vocês estão me vendo em carne viva pela
primeira vez, mas sou aquela cujo retrato está pendurado no bebedouro do
corredor do Lado B, por isso posso dizer que estou aqui uma vida inteira. Talvez
os que lhe pariram, ou os que pariram os que lhe pariram, tenham me conhecido
nos tempos em que a lousa e eu erámos amigas inseparáveis. Hoje mal posso
segurar minhas notas, tampouco posso me furtar delas e confiar na minha
memória. O salão, lindamente decorado, flores, arranjos, toalhas de linho, os
perfumes mais variados, não parecia tão atento e, assim, ela sentiu que estava
em casa. Não posso mensurar o que significou para mim esse convite. Desde que o
recebi, que escrevo poesia e leio filosofia, que voltei a ouvir música e a
pintar aquarelas, que penso no que poderia dizer a tantos jovens que estão a se
formar. Reconheço muitos dos que aqui estão. Vejo médicos, advogados,
políticos, padres, gente distinta, alguns executivos, e sinto que contribui
para isso. Nisso, uma salva de palmas vinda do lado esquerdo, puxou uma
verdadeira ovação. Não sabemos se o repentino rubor que lhe escureceu as faces,
era resultado do excessivo burburinho ou do rouge mal aplicado. De qualquer
maneira, o salão parecia mais ouvido. Não que isso tivesse feito alguma
diferença para a palestrante. Assim como o alcance de sua visão, há muito que
pouco lhe chegava aos ouvidos, nem mesma a sua própria voz ela conseguia,
seguramente, acompanhar. Nada disso a intimidou, nem quando ela disse, que
havia dedicado sua vida a educação e que essa era a sua vocação. Muitas outras
palmas seguiram sua fala. Ela sabia disso porque sentia que havia um certo deslocamento
no ar. Não daqueles que a deixavam enjoada, com ânsias, mas do outro tipo, que
parecia acender lugares há muito enregelados. Minha vida inteira dediquei ao
ensino, continuou, e hoje sou realizada por estar aqui, vendo meu trabalho
reconhecido. Quero agradecer a todos vocês que tornaram isso possível. E quero
desejar a vocês que hoje se formam um destino igualmente compromissado,
qualquer que seja o caminho escolhido. Foi minha fortuna servir como
professora. E desejo fortuna a todos vocês, porque ninguém vive sem partilhar. Recebo
essa homenagem com muito carinho e espero nunca esquecer esse dia. É isso que ainda me faz estar viva. Isso e o carinho dos meus ex-alunos. Se ela pudesse enxergar,
talvez desconfiasse do pipocar de luzes que vinham da plateia. Se ela tivesse
um smartphone e quiça soubesse o que era isso, talvez suspeitasse do efêmero de
todos os monumentos, quando sua imagem congelada se multiplicava em milhares de
retratos mundo afora, minha professora de infância#, tão querida#, me ensinou
os valores da vida#, inesquecível professora#, Dona Carmen, lúcida como no meu
tempo de menino#, Professora querida#, Foi minha professora, hoje é da minha
princesa#, amo#, Saudades eternas#, nunca esquecerei minha primeira
professora#, agradeço a professora carminha que me ensinou a ler#... O mestre
de cerimônias já se encaminhava para pegar o microfone, quando ela suspirou
profundamente e disse que queria, ainda, aproveitar a ocasião para agradecer em
especial a alguns ex-alunos, que ela não sabia se estariam na plateia, mas que
nunca a esqueceram. Agradeceu ao doutor João pelo ecocardiograma que ela não
pode pagar e pela receita genérica, que conseguia renovar mês após mês, na fila
da Pharmacia J. Um beijo no coração para a senhora Marluce, que havia lhe
deixado morar no quarto da Rua das Camélias. Os panetones que recebeu no natal, durante cinco anos seguidos, do senhor Arthur. Um agradecimento especial ao doutor Carlos, que havia
agilizado sua aposentadoria, depois de várias idas ao INSS, quando a cadastrou
como sitiante de alguma de suas terras. E, finalmente, a Eduarda, ex-aluna, tão
bonitinha, que sempre encenava, por causa do enroladinho negro dos seus cabelos,
a irmã má de Cinderela, nessa mesma escola, hoje professora e escritora, que
lhe dedicou o livro Ironias do feminino: vida que [não] merece ser vivida. Me despeço, então, com um Muito Obrigada.
Emocionante. Nota dez.
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