terça-feira, 12 de dezembro de 2017

das perdas e ganhos


Ela perdeu a si, perdeu seu amor, seus bichanos, seus óculos. Sobretudo, a matéria inorgânica que lhe dava a impressão de tudo ver. Ou ouvir, quando a reminiscência das melhores lembranças e suas canções singelas e ardentes ainda embalavam seus cabelos e deixava entrever seus dentes, em meios sorrisos.

Quando perdeu a si, se viu paralisada. Sua cama era seu universo. Do seu quarto, uma grande janela engradada deixava aos passantes alheios imagens de encarceramentos. Mas era daquele retrato fissurado, repartido por linhas de ferro, que ainda a permitia paisagens para além de sua galáxia íntima, prenhe de super novas e grandes buracos negros.

Largou mão dos banhos diários, não que fosse um grande sacrifício, deixou de ouvir os barulhos das ondas do mar, de degustar o amarelo e suas espumas refrescantes, andando duro, encastelada, com seus cabelos raspados.

Nos dias que se via obrigada a procurar psiquiatras, xamãs, rezas, terapias, beberagens, ia com um corpo trêmulo, ia não indo, indo não ia.

E foram horas, dias, meses... Com uma tremedeira de cão, quando os outros comemoram suas festividades, suando o céu com seus rojões.

O vermelho rebu já não pintava seus dias, suas mãos já não tinham anéis e a caveira que adornava seu pescoço torou.

Era um bicho tóxico, contaminado, empoeirado, tornado velho, tornado manada, cuja pele e carne se putrefava.

Um dia, uma leva de urubus a viram, passaram pelas suas grades e abocanharam seus restos. Depois que se refestelaram, voaram saciados, ainda famintos.


Assim, ela voou com eles, deixando-se ir. E sua cama ficou vazia, só com as marcas-fluidos de outrora.

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