Já tinha algum tempo que estavam juntos, rodando as estradas. Não
se sabe precisar ao certo que tempo era esse. Os relógios e os calendários já
não domesticavam nada. Tudo que era doméstico havia se tornado carcomido, igual
aos outros. Um dia para um, poderia ser vivido como uma década para o
companheiro do lado ou de trás. Eles se encontraram na estrada. Revezavam até a
combinatória dos assentos, na tentativa de tornar o hoje diferente do ontem.
Quando os outros chegaram iguais a mais inaudita das hordas,
explodiu o todo do tempo e do espaço com uma força cataclísmica, jamais vista. A
fome dos outros era tanta e de tamanha voracidade que famílias, grupos,
associações se canibalizaram e o amanhã parecia a promessa distante dos mais
crentes, imersos que estavam na distopia do vivido, do vindouro.
Seguiam em comboio, carros em filas indianas, muitos de origem
francesa, japonesa, italiana, brasileira, juntos em qualquer automóvel que
rodasse pelas estradas. Não importavam as nacionalidades. Não existiam mais
nações. Eram eles e os outros. E eles eram tão diferentes entre si mesmos, que a
vivência da outridade virou experiência cotidiana, na vontade de driblar a solidão
e de reafirmar os laços humanos de solidariedade em meio à praga. Os carros que
iam falhando pela defasagem de suas peças mecânicas, foram sendo empurrados para
o acostamento. Era importante não obstruir as estradas. Era importante não
deixar ninguém para trás. E, assim, eles iam se arrochando, se redistribuindo,
até o encontro com mais carros e desgarrados pela estrada, que também eram convidados a se juntarem ao grupo.
Alguns permaneceram no comboio, mas desistiram da logística ritualisticamente vivida no correr do cotidiano e no interior desse convívio e assim pegaram as transversais das estradas, em busca de novos territórios, se foi por amor ou desamor ou por motivos de força maior, não se sabe.
O gerenciamento das lideranças, numa tentativa de salvaguardar antigos hábitos, era cíclico, e encaminhado por meio de consenso, quase como uma assembleia de professores, votada em meio ao mato, que era adentrado por eles em busca de segurança, ainda que parcamente iluminado. Avistavam-se, em meio à tanta escuridão, apenas pela luz das estrelas e da lua. Não era do desejo deles alertar os outros ou grupos (d)eles que seguiam saqueando e destruindo os viventes no desejo, também capitalístico e-ou canibalístico, de sobrevivência.
Alguns permaneceram no comboio, mas desistiram da logística ritualisticamente vivida no correr do cotidiano e no interior desse convívio e assim pegaram as transversais das estradas, em busca de novos territórios, se foi por amor ou desamor ou por motivos de força maior, não se sabe.
O gerenciamento das lideranças, numa tentativa de salvaguardar antigos hábitos, era cíclico, e encaminhado por meio de consenso, quase como uma assembleia de professores, votada em meio ao mato, que era adentrado por eles em busca de segurança, ainda que parcamente iluminado. Avistavam-se, em meio à tanta escuridão, apenas pela luz das estrelas e da lua. Não era do desejo deles alertar os outros ou grupos (d)eles que seguiam saqueando e destruindo os viventes no desejo, também capitalístico e-ou canibalístico, de sobrevivência.
Quando os outros chegaram, eles perderam quase tudo. Perderam suas
famílias, casamentos foram deglutidos, filhos pereceram alquebrando os laços
mais sacros, casas foram abandonadas... Novos arranjos em meio ao caos foram
construídos, afinal era preciso sobreviver e essa (sobre)vivência não era mais
as das contas esquecidas e mal pagas, o inacabado dos trabalhos cotidianos que
afogavam e adoeciam a todos, essas pequenezas foram esquecidas, em meio a
urgência urgentíssima dessa nova pandemia.
Nesse comboio o ritmo das falas era bem plural, não só pela
cadência dos sotaques, pois muitos vieram de terras alheias àquelas estradas,
saídos de seus territórios familiares e, num golpe de sorte, quiçá pela
presença do divino tão diluído nesses tempos apocalípticos, se encontraram e o
desconhecimento de uns foram sendo refeitos na troca dos pneus, na partilha dos
víveres, na comunhão do desastre, mas também nos novos afetos, compartilhados
no limítrofe dessas existências.
Seria até uma boa história, se o enredo não fosse tão trágico. Os
outros eram presenças constantes e também ocupavam as estradas. Estavam, pois,
sempre em estado de alerta e de luta, era preciso viver, e viver o si entre
eles, corpo coletivo diluído na vontade de que todos eles saíssem ilesos e
fortalecidos. Nunca foi preciso fazer tanta força como a necessária para
permanecer na estrada e o lema era: ninguém é deixado para trás, ainda que
seguissem em velocidades diferentes. No meio do caminho, perderam alguns
companheiros de estrada, foram aposentados da vida. Essas perdas eram sentidas,
com saudades e com dor, mas também com a esperança de que eles, apesar dos
enterrados para trás, estavam vivos e juntos.
O natal se aproximava, diziam alguns que ainda estavam presos a
memória do outrora. O natal, nascimento de Jesus, poderia ser a promessa de
redenção da humanidade, do fim dos outros, dos carcomidos de morte. O espírito
deles, renovado como àquele que morto de sede, mergulha num açude de águas doces, pintavam com velhos batons, canetas de experiências idas, as latarias
daquele comboio. Eram as cores do natal, ainda que sem o piscar das luzes, pois
não havia mais energia elétrica, assim como outras realidades passadas.
Um dia, um deles, não se sabe exatamente a origem da ideia tida, falou:
vamos ocupar a universidade daquela cidade, pois ele lembrava que quando veio o
apocalipse era um feriado qualquer e os portões estavam sempre fechados. S.,
também achou uma boa ideia, porque seu corpo se ressentia dos dias encolhida
nos carros e das noites dormidas ao relento. Precisava de um lugar onde,
estrela que era, se sentisse constelada. Aqueles que conheciam o espaço
acataram a decisão, discutidas em noites e mais noites no desespero de criarem
uma saída.
Não foi uma decisão muito unanime, mas foi voto vencido. Era
a ilusão da democracia e do bom senso. Era o desejo voraz de estabelecerem
novos territórios que não fossem os das rodagens na estrada.
Um deles, CA., prático no uso das armas, alguns até cochichavam,
ele vai à frente, já foi campeão de tiro. A chefa daquele comboio, A., disse de
forma enérgica, precisamos nos organizar e, assim, todos, ao redor de mais uma
fogueira, redistribuíram tarefas, era preciso viabilizar a esperança, porque a
ouvindo, com tanta delicadeza, se sentiram também preenchidos da força advinda
da gentileza. M. muito habilidosa na sua arte de gerenciar, em cálculos, os víveres
e os kits de sobrevivência, prontamente elaborou um plano de contenção e
distribuição igualitária do pouco que eles ainda tinham, sem nunca deixar de
lado sua generosidade
E., que já tivera formação clínica, ajudava os mais combalidos,
nunca dizendo a real situação dos corpos feridos em meio a tantas rodagens, aliviava
as dores do corpo e também da alma. T. não cansava de dizer, vai dar certo, nós
vamos conseguir. T. tinha vindo de longe, não fazia parte do comboio principal,
mas trouxera suas bochechas rosadas e sua vontade de luta pela sobrevivência e
pela força em acreditar num lugar melhor.
N. dizia, tenham calma, como a fazer uma economia da esperança. Era
uma mulher prática e sua analítica do caos, já havia salvo o comboio de alguns
desastres. G. ainda tinha seu toca fitas, que sempre conseguia reabastecer nas
pilhagens pelos postos da estrada, cantando em alto som, sobre as estradas de
Santos e os amores que teve, fazendo sorrir aqueles que sabiam da sua fervorosa
e também contagiante admiração pelo Rei Roberto, ainda que esses fossem tempos
sem rei, sem lei, sem Estado.
W., pródigo como só ele, sempre antes de dormir, desejava paz e saúde
para todos. E todos se sentiam apaziguados e mais seguros no advento das noites
sombrias. J. era quem guiava pelas estradas, seu carro ia na frente de todos, mostrando os melhores caminhos. Diziam
que ela era um ás da velocidade, que quase ninguém conseguia acompanhar seu velocímetro,
mas isso foi no passado, ela aprendeu a maneirar o ritmo do seu acelerador, e sempre
cuidava para que ninguém ficasse para trás.
M.N., jamais perdia a pose, parecia uma lady, toda bonita, com um
humor todo dela, lembrando a todos dos cuidados necessários e dos percalços
vindouros. Era uma grande cuidadora e, por isso, indispensável.
L. tinha um riso fácil e um coração generoso, preparava e distribuía
a comida, como quem estivesse na sua casa, recebendo os amigos com os amendoins
que ela mesma torrava. M.T, já era o mais agitado de todos, tinha pressa, era
daqueles que na sua insônia, velava, à noite, pelos companheiros.
E.M. sabia que em outro grupo não sobreviveria, mas também não
desejava esse lugar do sossego, visualizado por eles. Sentia-se segura, em paz,
no seu próprio movimento, e sabia que um dia deixaria aquele comboio, era mais
forte que ela, porque a paz só era possível no nomadismo das estradas. Queria ir
com eles, encontrar um lugar de conforto. Contudo, sabia bem no seu íntimo, que
seria passageiro, porque sempre fora uma passageira de si mesma, assim como
sabia também que sentiria saudades e que seu coração iria partido, mas era preciso seguir
a rodagem.
Juntos eles chegaram a tal universidade abandonada. Abriram os
portões e precisaram fazer uma limpeza dos outros, que, como demônios, sentiam
o cheiro de carne, endoidecidos para deglutir a vida. Não sem muita luta, ocuparam
o espaço, acomodaram todos e festejaram no dia de natal, com um Single Barrel e
algumas cervejas quentes que tinham guardado para dias mais felizes, a comunhão
deles e a promessa de dias melhores, deitados nos bancos, mirando o céu, como
a esperar a vinda do salvador. Seus corações, redimidos, em sintonia, cantaram
uma bela melodia: estamos vivos, ainda que não totalmente seguros, pois um ano
novo já se anunciava e havia muito a ser feito...
Ps. Feliz natal aos meus amigos, companheiros das estradas e da
vida.
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