sábado, 21 de dezembro de 2013

Entre elas


A coisa toda aconteceu num dia qualquer, daqueles imprevistos, quando puderam, finalmente, se encontrar. Eram amigas de infância, ainda que o encontro tivesse se dado em tempos enrugados. A história delas, sempre entre elas, indiciava o alhures, pois suas juras ainda eram cruzando os dedinhos, pinicados e trocados em sangue, antes dos tempos e amores sombrios. Não eram da mesma turma da escola, tampouco tinha biótipos parecidos, uma era esbelta como a palmeira mais alta, a outra, atlética, era sempre quem pedalava, levando no bagageiro a terceira delas, que parecia uma oliva, toda uniforme em pele, feita como bibelô, pela mão mais generosa de Deus.

Joana nunca soubera bem como tinha entrado naquela turma que era um par. Lembrava, vagamente, apenas, que nunca antes tivera com quem partilhar os mais sombrios e alegres de seus dias. Entrou em trio, como que desconfiada, emudecida, afinal suas palavras eram sempre dela mesma, ressoando ora na mente, ora nos rabiscos que cuidava em queimar sempre que eles se corporificavam em papel. Não tinha nada no bolso, a não ser aquele isqueiro roubado de um fumante qualquer.

Maria não, Maria reinava, ora no céu, ora na terra. Era a mais vivida de todas, dizia sempre talvez, mais ou menos, depende, é relativo, como se a mágica dessa música tornassem todas invencíveis. Era em torno dela que convergiam todas. Não que fossem muitas, lembre-se que eram apenas três, mas todas se sentiam uma manada, governadas que eram por Maria. Maria, tampouco, era uma déspota, pelo contrário, parecia a grande mãe, já tinha feito sexo, sabia dizer os detalhes todos, das horas escorregadias, molhadas, agoniadas, ofegantes. Nunca falava o nome do homem ou do rapazinho, agora nem interessava tanto, não quando se entra nos enta. Homem para elas era qualquer um que tivesse mais primaveras. Não muito mais, apenas mais.

Isabela costumava ser chamada de Ira, entre elas, mas não que fosse raivosa ou qualquer coisa que o valha. Era a mais lida e vez ou outra era pega com a Iracema de Alencar, como se fosse a mais garotinha de todas, romântica, olivada, com olhos amendoados e cabelos de graúna. O sorriso, todo contente, parecia nunca doer na vida, como se a vida fosse doce, doce igual ao brigadeiro que furtava da cozinha da mãe, dizendo: prove esse batom, partilhando dos lábios a doçura da vida.

Mas isso fora no outrora de tudo. Quando, entre elas, uma vinda do norte, outra do sul, e aquela sem nunca ter desalinhado a geografia de sua vida, feito anfitriã, tempos depois, viu numa rede social qualquer, a coincidência dos espaços, disse, vamos? Por que não?

Não acredito que tenha sido confortável para nenhuma delas. O convite mesmo, feito pela vontade de poder falar, daquela que nunca saiu de lá, ainda que na distância dos tempos, coincidiu com as tardes apaziguadas de quem volta à terra pisada e se entedia no próprio ritual da memória.

Elas nem se procuravam mais, raras eram as ligações e as cartas tão delongadas de antes. Mas estavam em falta com as promessas feitas. E, assim, receosas de quebrarem não as juras, mas o linear de suas existências, crentes que eram devedoras do passado, se marcaram naquele bar. Não saberia precisar a cronologia desse reencontro. Entre elas, tampouco.

Sei que uma delas ficou muito nervosa. Usou toda a sua maquilagem francesa, fez os contornos todos e postou na sua face um brilho todo especial, se sentindo novamente bela, como nunca mais o sentira. Saiu segura, não como uma trova simples, mas como se fosse outra, sofisticada, toda simulada no eau de parfum. Esquecera, inclusive dos dias de poucas falas, das tardes que se sentira querida se sentindo útil, enquanto pedalava horrores.

A outra, moderna, sexy, foi toda aberta, bacana como só ela se sentia, toda esperta, craque de si mesma. Levou até seu portfolio, para mostrar como ela se tornara uma mulher grande, como era outra.

A que convidara todas, dizia apenas, lembram-se daquela cachaça? Lembram-se dos dias cinza? E enquanto relembrava, tomava umas e outras.  Elas, entre elas, queriam lembrar o tempo dos dias comuns e velozmente entraram no ritmo daquela que nunca saíra de lá.

Foi um desmantelo só. A maquiagem borrara. O portfolio virou descanso de copo e se estabeleceu outra dinâmica. Eram, entre elas, três mulheres. E isso, você sabe, se torna um chama. Apareceram marinheiros, advogados e drogados, entre outros, querendo amar e desamar. Uma delas, num meneio, quase elegante, se não fosse embriagado, dispensava todos. Xô, cai fora, sai daqui.

E, entre elas, sem nem saberem onde estavam, disseram, umas as outras, dos amores e desamores, das mulheres que furtivamente beijaram, dos filhos tidos sem serem queridos, do conforto dos dias perdidos pelo pior dos parceiros, da vontade de serem outras, da tristeza das salas abertas, da vontade de darem sem se dar, do dia em que uma delas disse adeus a todos, dizendo vou ver minhas amigas, como se o retorno delas, fosse o de si mesmo, falando num ritmo tão rápido, para elas, entre elas, a tornar efêmero o mais longo dos tempos, quando, ao se despedir dos que deixara para trás, das amarras dos seus dias, dizendo adeus a tudo que era estéril, tivesse seviciado o destino.

E assim, entre elas, uma delas, entre um gole e outro, sumiu. Não se sabe onde ela está, até hoje, se viva ou morta, de morte morrida ou morte matada. As outras dela, diziam apenas, continuando, ela está bem, como se partilhassem os batons de outrora e o passado já não cheirasse a carne putrefata.

Eu apenas ouvia como boa escrivã que era e, se pudesse delegar, arquivava o caso, porque entendi que aquilo só poderia ser resolvido entre elas.



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