domingo, 2 de fevereiro de 2014

@postas



A noite toda fora laranja, vodka com qualquer colorante, depois de uma tarde de enterro. Era um daqueles dias, dia de decisão final, bares lotados, calçadas sem alcance, ruas entremeadas e o celular sempre a tocar: por que você não está aqui? Ele nem poderia responder, mas lépido, entre um recado e outro, fez as @postas todas. Quem estava ao lado dele naquela noite, nem entendeu tanta empolgação. Não depois de um dia daquele.

@postou vinte reais em todos da esquerda, fosse branco, brasileiro, mulher ou mais velho. Seu time de @postas só não era mais idiossincrático do que si mesmo. Mas assim tirava a grana dos víveres. Não que a esquerda fosse uma decisão qualquer, era apenas uma decisão, dizia a si mesmo, nada relacionado com aqueles tempos de outrora em que seu closet era apenas vermelho e branco. Coincidiu que na mesma data tinha muito em jogo, família, amores, amigos, velório, mas disso não  tratava aquela @posta.

Era um final de ano, poucos dias antes do pipocar dos frisantes. Tinham vindo da mesma comarca, trazendo na mala, como naquela música, o desejo dos aconchegos, ainda que tivessem deixado mulheres, filhos e mães, como a estender os dias dominados e a leveza insustentável do cotidiano. Naquela pequena mesa, desabaram a ansiedade dos seus corpos, como se fosse uma sentada bem ordinária. O dia havia sido longo, quente, abafado e úmido das lágrimas de despedidas e dos apertos de mãos nervosos. Não por acaso, faziam de conta que ainda era muito cedo, apesar do correr das horas.

O encontro se dera em função da morte. Eram todos da mesma família. Sem comer ou beber o morto, saíram famintos e sedentos em busca de um lugar qualquer, de uma tv e de uma transmissão a cabo para fazerem as @postas. Mas nem todos que estavam velando, foram juntos, apesar da enormidade dos choros chorados e daqueles contidos. Foram em busca da luta, naquela cidade não totalmente mapeada, um tio, a mãe e o sobrinho juntos, ou melhor, um irmão, ela e seu filho. Dois deles não curtiam esses jogos vorazes, assim como não curtiam os encontros que se despediam da vida, mas isso nem importava de todo. Era apenas mais um elemento inusitado entre tantos.

Vocês não entendem nada, escutem o mestre, dizia, como se o mestre escriturado ganhasse a forma das maiúsculas. Essa é a luta mais importante do ano, é a grande revanche de todos os tempos. O ano, provavelmente, desdenhava, pois ele mesmo havia anunciado seu fim, esperando apenas seu ritual de despedida, além do que gostava mesmo era dos fogos de artifício e das promessas nunca cumpridas, que já não eram mais sua responsabilidade. Que viesse o próximo, sorria todo aposentado.

O caso é que a luta, a última de todas da noite, prometia a chance de redenção do desafiante, desacreditado e derrotado em sua última passagem pelo ringue. Achava-se invencível, se portava como o único, dançava como o maior dos bailarinos, sem entrar no mérito das causas perdidas. Tropeçou, pois apesar de forte, não tinha sido tão atento. Até hoje não acreditava nos discursos proliferados em torno de si. Sabia apenas que não foram justos com ele, que trouxera tantas alegrias e serviços a todo seu povo, àquele país.

Essa revanche desconfiava das fronteiras nacionais. Adentrava os lares do mundo todo. E na mesa em que aqueles da mesma família estavam, era um show à parte, como se cada um deles estivesse também enluvado e pronto para os golpes.

Não que eles tivessem muito espaço para as conversas dos reencontros. O tilintar dos copos, o frêmito das torcidas, a insistência do telefone e suas @postas, compunha uma inusitada melodia, como se os socos fossem a batida de um baixo. Agrupados e equipados com seus aparelhos Wi-Fi, cada um em torno da mesa, estavam, bastando. Não conversaram sobre os signos, sobre os trabalhos, sobre os amores, não entre eles. Bebiam apenas e esperavam pela redenção, companheira das revanches.

Assim como o congo das lutas, o celular dele tocava insistentemente. Não sei se pra anunciar a derrota ou o início de outro round. Ele nem sabia se gostava ou não da insistência daqueles toques. Respondia apenas, o que é? Estou vendo a luta. Não, não tem mulher aqui. Deixe de ser louca. E desligava, sem nem ao menos explicar sobre quem ou o que era. Em outros toques, dizia, o mestre aposta 500 reais, rindo gostoso, como se pudesse prever o futuro. Ele não sabia, mas os que estavam ao seu lado, desconfiavam daquela loucura deixada de lado. Desconfiavam, sobretudo, que aquela era uma luta perdida. Perdida desde que havia se iniciado. As lutas desatinadas nunca são finalizadas, nem mesmo pelo maior de seu mestre. Não que isso fosse da competência de alguém, nem naquela hora nem em hora nenhuma.

A irmã, que também era a mãe, apenas queria se afogar na sofreguidão do burburinho e dos goles inconsequentes. Seus cabelos outrora lisos e longos tinham sido tratados no salão para parecer um baile de ondas, como se suas curvas pudessem por em xeque a retidão linear de sua vida. Passara a vida toda evitando as lutas. Nunca se sentira campeã, nem muito menos desejava o fervor das torcidas, nem o desafio dos conflitos, armados ou não. Passara a vida como a coadjuvante de uma história qualquer, sem atropelos, sem dramas, sem atos finais. Não gostava dos dias cinza ou ensolarados, nem das noites estreladas ou sombrias. Detestava, sobretudo, dormir, pois em seus sonhos de olhos fechados era atriz principal, quando tudo girava em torno dela. Também não era uma mulher de @postas. Não queria perder nem ganhar. Não sabia por que esperava por aquela luta, não sabia por que havia entrado naquele salão. E não gostava do dessaber. Amanhã pensaria sobre isso, @postou.

O mais novo deles não achava que aquela luta lhe pertencia. Estava ali como esteve no velório mais cedo, esperando passar, esperando passar a morte, a vitória, as @postas. Sabia que aquele não era o seu lugar, mas também não sabia onde seria, não tinha pressa, ainda que seu corpo parado parecesse a largada de um atleta. Tampouco esperava aguardar, pensava enfadado, enquanto vagueava por tudo que havia ouvido antes, misturado que estava ao som do seu aparelho de mp3. Soube das histórias de família, conheceu um tanto de desconhecidos que lhe abraçava chamando de primo, bebeu o café ralo e doce oferecido, deu os sorrisos certos, acenou para todos, meio de lado, em busca das calçadas e das sombras daquela cidade sem árvores, afinal, tinha que haver uma solução para seu corpo empachado desses passados que tampouco lhe pertenciam. Enquanto esperava a luta, entre um drink e outro, refastelou-se de carne, afinal estavam numa churrascaria. O que mais ele poderia pensar ou dizer? Ainda esperando passar, @postou com seu tio a conta da noite, sabendo que, independente do resultado, não pagaria nada.

O apresentador da cerimônia anunciou no ringue o início da maior luta de todos os tempos. O volume das tvs foi ao máximo. Os garçons pararam de servir, encostando-se à clientela. Só se ouvia os sons dos goles e se um gato ali estivesse, teria ouvido também toda aquela tensão, sem que ele achasse uma direção. Cada um ali parecia também em busca de sua própria redenção, de sentir o gosto da desforra, da vitória ainda desavisada, querendo que aquele que tentava recuperar seu cinturão recuperasse também todos, da mesma forma como foram encetadas todas as suas lutas, com seu passo rápido e dançante.

Recuperasse o casamento, já rompido de tantas traições, do casal ao lado. Que recuperasse o dinheiro de todas as aposentadorias daquele grupo de envelhecentes que, seduzidos pela possibilidade dos confortos, foram roubados. Que tornasse fértil o útero daquela outra moça. Que pagasse as contas de tantos aluguéis atrasados. Que sossegasse o coração inquieto de drogas do filho da proprietária do recinto. Que possibilitasse ao garçom terminar seu curso para que suas noites fossem suas novamente. Que arrumassem uma parceira para aquela que sempre fora tão sozinha. Para que o coração dos desolados fosse preenchido por um carinho, por uma fé ou por alguma vontade de vencer.

O campeão deles, poucos minutos depois de começada a luta, foi à lona. Mas ele não caiu de um jeito qualquer. Caiu quebrado, pele rompida, osso exposto, sem ser finalizado, nocauteado ou por contagem de pontos. Caiu como caem os casamentos que se rompem repentinamente, como o ressentimento daqueles que não sabem perdoar, como a força das mortes não esperadas, como as batalhas vencidas de guerras já caducas.

O mais novo tirou os fones de seu ouvido e sorriu. Já poderia seguir viagem, sem ter nenhuma conta a pagar. Ela pensou, aliviada, ainda bem que não era ela, sem ter descruzado os braços e sem abrir mão daquela certeza que sempre lhe dizia estar correta em seu desligamento. Ele, por outro lado, com força, disse ao garçom, manda outra, todo feliz. Ganhara todas as @postas, sem deixar de gracejar que toda revanche é foda e que ele era o mestre.

E assim, fechou-se o ano, com a ressaca de tantas @postas.


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