A noite toda fora laranja,
vodka com qualquer colorante, depois de uma tarde de enterro. Era um daqueles
dias, dia de decisão final, bares lotados, calçadas sem alcance, ruas entremeadas
e o celular sempre a tocar: por que você não está aqui? Ele nem poderia
responder, mas lépido, entre um recado e outro, fez as @postas todas. Quem estava
ao lado dele naquela noite, nem entendeu tanta empolgação. Não depois de um dia
daquele.
@postou vinte reais em
todos da esquerda, fosse branco, brasileiro, mulher ou mais velho. Seu time de @postas
só não era mais idiossincrático do que si mesmo. Mas assim tirava a grana dos
víveres. Não que a esquerda fosse uma decisão qualquer, era apenas uma decisão,
dizia a si mesmo, nada relacionado com aqueles tempos de outrora em que seu
closet era apenas vermelho e branco. Coincidiu que na mesma data tinha muito em
jogo, família, amores, amigos, velório, mas disso não tratava aquela @posta.
Era um final de ano, poucos
dias antes do pipocar dos frisantes. Tinham vindo da mesma comarca, trazendo na
mala, como naquela música, o desejo dos aconchegos, ainda que tivessem deixado
mulheres, filhos e mães, como a estender os dias dominados e a leveza
insustentável do cotidiano. Naquela pequena mesa, desabaram a ansiedade dos
seus corpos, como se fosse uma sentada bem ordinária. O dia havia sido longo,
quente, abafado e úmido das lágrimas de despedidas e dos apertos de mãos
nervosos. Não por acaso, faziam de conta que ainda era muito cedo, apesar do
correr das horas.
O encontro se dera em
função da morte. Eram todos da mesma família. Sem comer ou beber o morto, saíram
famintos e sedentos em busca de um lugar qualquer, de uma tv e de uma
transmissão a cabo para fazerem as @postas. Mas nem todos que estavam velando,
foram juntos, apesar da enormidade dos choros chorados e daqueles contidos.
Foram em busca da luta, naquela cidade não totalmente mapeada, um tio, a mãe e
o sobrinho juntos, ou melhor, um irmão, ela e seu filho. Dois deles não curtiam
esses jogos vorazes, assim como não curtiam os encontros que se despediam da
vida, mas isso nem importava de todo. Era apenas mais um elemento inusitado
entre tantos.
Vocês não entendem nada,
escutem o mestre, dizia, como se o mestre escriturado ganhasse a forma das
maiúsculas. Essa é a luta mais importante do ano, é a grande revanche de todos
os tempos. O ano, provavelmente, desdenhava, pois ele mesmo havia anunciado
seu fim, esperando apenas seu ritual de despedida, além do que gostava mesmo
era dos fogos de artifício e das promessas nunca cumpridas, que já não eram mais
sua responsabilidade. Que viesse o próximo, sorria todo aposentado.
O caso é que a luta, a
última de todas da noite, prometia a chance de redenção do desafiante, desacreditado
e derrotado em sua última passagem pelo ringue. Achava-se invencível, se
portava como o único, dançava como o maior dos bailarinos, sem entrar no mérito
das causas perdidas. Tropeçou, pois apesar de forte, não tinha sido tão atento.
Até hoje não acreditava nos discursos proliferados em torno de si. Sabia apenas
que não foram justos com ele, que trouxera tantas alegrias e serviços a todo seu
povo, àquele país.
Essa revanche desconfiava
das fronteiras nacionais. Adentrava os lares do mundo todo. E na mesa em que aqueles
da mesma família estavam, era um show à parte, como se cada um deles estivesse
também enluvado e pronto para os golpes.
Não que eles tivessem muito
espaço para as conversas dos reencontros. O tilintar dos copos, o frêmito das
torcidas, a insistência do telefone e suas @postas, compunha uma inusitada
melodia, como se os socos fossem a batida de um baixo. Agrupados e equipados
com seus aparelhos Wi-Fi, cada um em torno da mesa, estavam, bastando.
Não conversaram sobre os signos, sobre os trabalhos, sobre os amores, não entre
eles. Bebiam apenas e esperavam pela redenção, companheira das revanches.
Assim como o congo das
lutas, o celular dele tocava insistentemente. Não sei se pra anunciar a derrota
ou o início de outro round. Ele nem sabia se gostava ou não da insistência daqueles
toques. Respondia apenas, o que é? Estou vendo a luta. Não, não tem mulher
aqui. Deixe de ser louca. E desligava, sem nem ao menos explicar sobre quem ou
o que era. Em outros toques, dizia, o mestre aposta 500 reais, rindo gostoso,
como se pudesse prever o futuro. Ele não sabia, mas os que estavam ao seu lado,
desconfiavam daquela loucura deixada de lado. Desconfiavam, sobretudo, que aquela era
uma luta perdida. Perdida desde que havia se iniciado. As lutas desatinadas
nunca são finalizadas, nem mesmo pelo maior de seu mestre. Não que isso fosse
da competência de alguém, nem naquela hora nem em hora nenhuma.
A irmã, que também era a mãe,
apenas queria se afogar na sofreguidão do burburinho e dos goles
inconsequentes. Seus cabelos outrora lisos e longos tinham sido tratados no salão
para parecer um baile de ondas, como se suas curvas pudessem por em xeque a
retidão linear de sua vida. Passara a vida toda evitando as lutas. Nunca se
sentira campeã, nem muito menos desejava o fervor das torcidas, nem o desafio dos
conflitos, armados ou não. Passara a vida como a coadjuvante de uma história
qualquer, sem atropelos, sem dramas, sem atos finais. Não gostava dos dias
cinza ou ensolarados, nem das noites estreladas ou sombrias. Detestava,
sobretudo, dormir, pois em seus sonhos de olhos fechados era atriz principal,
quando tudo girava em torno dela. Também não era uma mulher de @ postas. Não queria
perder nem ganhar. Não sabia por que esperava por aquela luta, não sabia por
que havia entrado naquele salão. E não gostava do dessaber. Amanhã pensaria
sobre isso, @postou.
O mais novo deles não
achava que aquela luta lhe pertencia. Estava ali como esteve no velório mais
cedo, esperando passar, esperando passar a morte, a vitória, as @postas. Sabia que
aquele não era o seu lugar, mas também não sabia onde seria, não tinha pressa,
ainda que seu corpo parado parecesse a largada de um atleta. Tampouco esperava
aguardar, pensava enfadado, enquanto vagueava por tudo que havia ouvido antes,
misturado que estava ao som do seu aparelho de mp3. Soube das histórias de família,
conheceu um tanto de desconhecidos que lhe abraçava chamando de primo, bebeu o
café ralo e doce oferecido, deu os sorrisos certos, acenou para todos, meio de
lado, em busca das calçadas e das sombras daquela cidade sem árvores, afinal,
tinha que haver uma solução para seu corpo empachado desses passados que tampouco lhe pertenciam. Enquanto esperava a luta, entre um drink e outro, refastelou-se
de carne, afinal estavam numa churrascaria. O que mais ele poderia pensar ou
dizer? Ainda esperando passar, @postou com seu tio a conta da noite, sabendo
que, independente do resultado, não pagaria nada.
O apresentador da cerimônia
anunciou no ringue o início da maior luta de todos os tempos. O volume das tvs
foi ao máximo. Os garçons pararam de servir, encostando-se à clientela. Só se
ouvia os sons dos goles e se um gato ali estivesse, teria ouvido também toda aquela
tensão, sem que ele achasse uma direção. Cada um ali parecia também em busca de
sua própria redenção, de sentir o gosto da desforra, da vitória ainda
desavisada, querendo que aquele que tentava recuperar seu cinturão recuperasse também
todos, da mesma forma como foram encetadas todas as suas lutas, com seu passo rápido
e dançante.
Recuperasse o casamento, já
rompido de tantas traições, do casal ao lado. Que recuperasse o dinheiro de
todas as aposentadorias daquele grupo de envelhecentes que, seduzidos pela
possibilidade dos confortos, foram roubados. Que tornasse fértil o útero
daquela outra moça. Que pagasse as contas de tantos aluguéis atrasados. Que sossegasse
o coração inquieto de drogas do filho da proprietária do recinto. Que possibilitasse
ao garçom terminar seu curso para que suas noites fossem suas novamente. Que arrumassem
uma parceira para aquela que sempre fora tão sozinha. Para que o coração dos
desolados fosse preenchido por um carinho, por uma fé ou por alguma vontade de
vencer.
O campeão deles, poucos
minutos depois de começada a luta, foi à lona. Mas ele não caiu de um jeito
qualquer. Caiu quebrado, pele rompida, osso exposto, sem ser finalizado, nocauteado
ou por contagem de pontos. Caiu como caem os casamentos que se rompem
repentinamente, como o ressentimento daqueles que não sabem perdoar, como a
força das mortes não esperadas, como as batalhas vencidas de guerras já
caducas.
O mais novo tirou os fones
de seu ouvido e sorriu. Já poderia seguir viagem, sem ter nenhuma conta a
pagar. Ela pensou, aliviada, ainda bem que não era ela, sem ter descruzado os
braços e sem abrir mão daquela certeza que sempre lhe dizia estar correta em
seu desligamento. Ele, por outro lado, com força, disse ao garçom, manda outra,
todo feliz. Ganhara todas as @postas, sem deixar de gracejar que toda revanche é
foda e que ele era o mestre.
E assim, fechou-se o ano,
com a ressaca de tantas @postas.
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