quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Borboletas e violetas


A primeira vez que a senti, procurei não vê-la mais. Não sabia nada ao seu respeito, de onde viera, o que desejava, tinha apenas uma lista com o nome de todos que estavam na fila, esperando por receber um crachá. Provavelmente um daqueles nomes era o dela. Entregava as pastas daquele encontro que era um misto de catarse, estudo de grupo, confraternização, como se fosse um daqueles funcionários públicos que nos atendem sem nem ao menos desviar o olhar da sua mesa. Assine aqui, disse, me desviando toda.

A primeira vez que a vi, vi que ela me olhava sem nem, ao menos, me ver, como se seus olhos escorregassem como manteiga quente. Incomodada com a cegueira que em mim era posta, peguei o meu crachá e fui sentar naquele longo auditório. Mas sabia que sentaria bem na frente. Queria que ela me visse. Seriam muitos dias juntas e num deles, pensei, a roubaria num olhar qualquer.

Na segunda vez, não a senti no alcance da minha circunferência. Mas sabia que era ela. Sentia, como os caçadores, concentrados que eram em escutar o derredor e ver a totalidade a partir dos rastros, que era ela que vinha nas minhas costas, não que a melodia dos seus saltos naquele chão de mármore tivesse me alertado. O alerta veio de um suor gelado nos meus pés, como a enunciar o fantasmagórico de outra presença. Senti, apenas, quando um braço, delicadamente, roçou meu ombro. E eu nunca mais fui a mesma. Percorri o mesmo corredor com minhas solas de borracha, quicando como uma atleta de saltos curtos.

Não pude conter o sorriso quando a vi de costas. Não sabia que tipo de traje era aquele que de tão destoante não me fez esquecer, ainda daquela primeira vez, aquele chinelo de couro cuja presilha era o símbolo da paz. Uma hippie, pensei, sorrindo internamente, que démodé. Mas esperava ver de novo os seus pés. Pareciam pés de princesa ou daquelas bonecas de bibelô. Senti vontade de ver o rosto, mas ele ainda não se mostrara.

Aquelas reuniões sempre pareciam demorar décadas. Como era responsável pela entrega das listas de presença, das águas e dos cafezinhos, não me detinha nas frases, que pareciam proferidas pela elegância das línguas corretas, pausadas e claras dos palestrantes. Não me interessava, nem queria aprender mais do que já sabia ser excesso. Apenas concordava entre uma hora e outra com qualquer um que falasse, meneando a cabeça, olhando sem ver. Mas esse encontro, sem vistas, tinha criado um descompasso em mim, como se um oficial de justiça tivesse vindo a minha casa me destituir de tudo aquilo que eu nem possuía e ainda assim eu temesse como quem teme pela própria vida, ficar privada da minha privação. Não era lógico. Será que estava desenvolvendo aquelas manias medicalizadas das primas distantes?

Ela era curiosa, não, não era curiosa, era desconcertante. Não que aqueles tênis surrados fossem diferentes da maioria das moças que ostentavam a mesma farda. Alias, pensei, bem surpresa, preferia o chinelo. Pelo contorno dos seus dedos poderia, quem sabe, desenhar o resto. Quem sabe poderia chegar ao seu rosto. Ficava acompanhando suas idas e vindas com aquela bandeja trêmula, como se a qualquer momento viesse um descarrilhamento de copos, xícaras e cacos. Seu rosto estava sempre coberto por cachos ou pelas sombras que a encobriam enquanto andava com o olhar baixo. Esse olhar cabisbaixo me pegou, como se tivesse me visto de frente e de dentro, e me vi saindo do auditório, apressadamente, acendendo um cigarro em direção ao carro, como a exorcizar os tempos em que também não tinha olhos para o mundo. Já havia tratado disso em milhares de sessões, das mais diversas linhas. Tinha entendido porque era preciso olhar à frente como se o correr dos passos tivesse deixado em cada passada já dada as vergonhas, os risos, as quebras, os desejos recalcados. Talvez não voltasse a esse seminário, pensou ao mesmo tempo em que pediu ao barman um Dry Martini duplo.

Ninguém sabia nem eu poderia compartilhar com nenhum outro a não ser com minha própria divisão que minha vista era curta e que para servir os cafés, os chás, o buffet ou qualquer coisa que me colocasse às mãos, tinha desenvolvido uma estranha forma de ver. Na minha barriga moravam milhares de borboletinhas e eu via através delas. Não que isso ajudasse muito, o olhar da borboleta, sem a luz ultravioleta, só era compensado pelas suas antenas. Raramente elas me mostravam muito, mas quando o faziam pareciam indicar todas as cores dos arco-íris. Era uma estranha combinatória, pois as cores só me vinham através da pele. Quanto mais quente a cor me vinha, mais ruborizada ficava, como se a qualquer momento o sangue pudesse pedir licença se despedindo pelos poros. Era uma manada desgovernada me indicando o derredor. E de tanto ver e não ver, senti tonturas, daquelas de câmera lenta, percebendo o deslocamento do ar e o espirrar dos líquidos quando a bandeja deslizou das minhas mãos, bem no colo daquele tailleur violeta.

Fiquei totalmente banhada. Ela apavorada, com a voz alquebrada me chamando de senhora, me desculpe, como posso ajuda-la? Me leve ao toalete. E assim segui aqueles tênis surrados, ao mesmo tempo em que me desfazia do meu blazer.

Meu Deus, o que eu fizera? Pensava, enquanto apressava os passos para não errar o caminho.

O grande lavabo estava desocupado. Todos ainda estavam em seus acentos no auditório. Vi, quando ela pegou lenços higiênicos e molhou, me entregando de lado. Eu me recusei a segurá-los. Senhora, sei que pode não ser o suficiente, mas pode minimizar o desastre, desculpe, sou muito desastrosa. Não resisti mais muito tempo e me aproximei daquele corpo estranho. Puxei-a para minha frente e levantei aquele queixo tão cabisbaixo. Foi quando eu vi, vi seus olhos, eram escuros, como um céu sem estrelas, carregado de nuvens densas, como um buraco negro que não tinha luz nenhuma. Eles não eram grandes, mas profundos, como se pudesse sugar o mundo para dentro de si e ainda assim pareciam não ver nada. Não poderia dizer mais nada sobre seu rosto. Apenas sobre seus olhos.

As antenas dentro de mim entraram em frenesi. As borboletas começaram a sair do meu corpo, pelos ouvidos, pelas pontas dos dedos, pelos fios dos cabelos, pousando na iluminação daquele ambiente, como se o seu feixe de luz, ao ultrapassar as batidas de suas asas, jorrassem todas as cores que faziam minha pele abrir em milhões de olhinhos que ora se concentravam no âmbar dos seus olhos, ora no carmim de sua boca. Só havia sentido algo parecido quando provei meu primeiro pedaço de caramelo com morango, ainda que o gosto fosse  anos luz de tudo que fosse imaginável ou semelhante. Pousou na minha boca lentamente como a me confundir com as borboletas todas. Levemente no começo, depois profundo, aberto, sedento. Eu formigava inteira, sentindo que o universo era uma liquidez só e que eu poderia me embriagar com todos os seus quadrantes.

A beijei de olhos abertos. Ela recebeu meu beijo com olhos mais abertos ainda, me tragando toda, me cheirando como se seu nariz fossem mãos a me enlaçar. Desvencilhou-se dos meus dedos que seguravam seu queixo e afundou na curva do meu pescoço, sem respirar nem nada, apenas aspirando, como se aquele fôlego fosse o primeiro dos seus dias.

Não era possível, o tom violeta do seu traje reverberava por todo o ambiente e eu quase pude ver. Parecia que a tinha visto me despindo toda, me habitando inteira. Parecia que tinha visto sua blusa de seda colada aos seios, molhada pelo meu desastre, ser descartada num meneio urgente. Parecia que eu tinha visto a coisa mais bela do mundo. Mas desse meu quase olhar os sentidos explodiram, sobrecarregados que estavam, como a me colocar em curto-circuito, como a me fazer sair do corpo, tal como meu espírito naqueles dias de viagem astral, a entrar num espaço que não era mais de queda, de escuridão, mas de êxtase, como um gozo sem fim.

Nunca havia sentido tanta urgência e tão pouca pressa. Poderia rasgar o mundo com minhas próprias mãos e o quebrado em mil linhas só para monumentalizar aquele instante, aquele momento em que a grudei na cerâmica e a provei da mesma forma que ela tinha me cheirado. Não sei quanto tempo durou, que fome era aquela, que lugar estava indo. E nem como poderia parar. Mas nossos corpos pararam, enxagues, mas ondulados pela ressonância de todo aquele encontro. Virei-me de lado, para poder ver seu olhar negro novamente, quando vi que a densidade da tempestade desabada lavara seu olhar, antes nublado, deixando uma manta de estrelas. Ela apenas suspirou.

Quando suspirei, as borboletas voltaram todas pra mim e fizeram uma bagunça total, se deslocando por todos os meus membros, que pareciam não obedecer mais seus territórios familiares. Pensei comigo, teria que me acostumar que minha forma de ver jamais seria a mesma. E nem eu queria...

No outro dia, depois que nos fomos, a vi servindo os cafés ainda cortinada pelos seus cachos. Era o último dia do evento. E sabia que poderia ser a última vez que nos veríamos. Enquanto os colegas terminavam suas apresentações e davam início ao coquetel que finalizava o evento, ouvi quando me perguntou, sem falar, por que você não fica, gostaria de ver novamente, no que respondi, sem voz, venha comigo...



Eu fui e hoje vejo tudo ultravioleta


Um comentário:

  1. Linda narrativa, elisinha. Adoro textos em que consigo ser praticamente uma testemunha da situação. Esse é um.
    Parabéns pela bela escrita.
    Bjos

    Flavia R.

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