segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Dexter mata Lobão!


A grama do vizinho verdejava sem as flores malditas. Mas nem sempre fora assim. Alguns anos atrás ele chegara com apenas uma pequena mudança. Percebi, enquanto verificava a caixa dos correios, que ele era de parcas posses. Não tinha mais do que um colchão, uma mesa de quatro cadeiras, uma geladeira velha e seu gato. Lembro que na época pensei em como ele havia conseguido entrar na nossa vizinhança, mas logo tratei de esquecer, não parecia que seria permanente.

Dias depois de sua chegada, fiquei levemente irritado com o som que vinha desse meu vizinho. Parecia que as vozes completavam a ausência de posses. Eram vozes de muitos e todos falavam com um estranho sotaque. Me aproximei da cerca viva que nos separava querendo descobrir de que lugar ele vinha. Não soube discernir totalmente, mas alguma coisa me dizia que eram nortistas. Não que tivesse descoberto alguma cadência própria. Mas pela intensidade do barulho, cordas, coros, batuques e pela cor marronzinha do vizinho, acreditei que ele tinha descido de lá.

Talvez eu até tivesse embebecido mais minhas rosas, investigado mais um pouco, se não tivesse tido um susto daqueles, quando o gato do vizinho, desses sem raça definida, escondido por entre os arbustos, me pegou olhando, como se dissesse, que indiscreto. Tratei logo de arrumar minhas ferramentas de jardim e voltei para o interior da minha casa.

Higienizei as mãos no lavabo do piso térreo e lavei o rosto. Se fosse um dia como outro qualquer, como os dias de ontem, teria passado a loção no rosto, tomado meu leite quente com amêndoas, conferido o jornal on line italiano, e ido para meus lençóis egípcios, ligado minha Foscarini e folheado os livros que o arquiteto me indicara para deixar a mão na mesinha de cabeceira. Seria o sono certo, o sono dos justos. E nunca havia me falhado.

Uma hora depois, farfalhei os panos, me descobrindo todo, como se o som que se propagava pelo mesmo céu, meu e do vizinho, tivesse invadido meu lar.

No outro dia, quando cheguei no escritório, cheguei engomado, terno em riste, riscado, o mesmo que havia usado para os dias especiais. Segui corredor adentro, parando apenas para averiguar minha agenda com a secretária, quando, com a mão já posta na empunhadura da minha sala, ela disse: O senhor está precisando de algo? Claro que disse não, claro que de forma ríspida. Apenas não sei se ela percebeu minha hesitação. Mas ela não era paga para perceber nada, lembrei, enquanto assinalava na agenda, um lembrete de substitui-la.

O caso é que aquele dia bagunçou o resto do meu tempo. Entre um processo e outro, enquanto despachava, lembrava da advertência do gato e do olhar, levemente espantado, da secretária, que cuidei de trocar no dia seguinte.

Em casa, já ambientado, preferi ficar sem ir ao jardim. Correram dias. Meses até. Nunca fui muito católico, mas acompanhei, toda noite, o jornal italiano quando noticiou a aposentadoria do papa alemão. Cheguei a pensar, que tempos loucos esses, em que festejam a saída de um europeu, salvo de passagem, com extremo bom gosto, pois secretamente me regozijei quando vi que ele havia usado o mesmo sapato vermelho que comprara para os dias de verão, ser substituído por um argentino franzino, que falava em marte, que falava em gays, que falava neles. Daquele dia em diante, preferi os noticiários ingleses. Estava farto da cobertura italiana.

Eu sabia, pela ancestralidade do meu nome, que ali, onde eu nasci, não era a minha origem. Cheguei até a pagar, uns trocos qualquer, ao melhor historiador das origens, queria mandar tecer meu brasão, em cima da lareira, pelas tecelãs usadas no último desfile prét-a-porter, mas me neguei a pendurar a renda das paraíbas. Onde eles estavam com a cabeça?

Em meio a tudo isso, tinha o meu vizinho. Ele ainda existia. Não sei se outros móveis haviam sido despachados no seu endereço. Mas, com certeza, sua velha mudança ainda estava lá.

Outro dia, esbarrei com aquele farsante de historiador que havia contratado em frente a área comum do meu condomínio. Audacioso, me informou sobre seu último artigo publicado, falando asneiras sobre as origens rurais das famílias que colonizaram meu país. Cortei rapidamente a conversa, não sem perguntar para que casa ele estava indo. Ele respondeu e eu senti uma fúria me tomando conta, como se eu reconhecesse as vozes do meu vizinho.

Nesse dia, voltei ao meu jardim. Queria ouvir, por entre o eco daquelas parcas posses, se meu nome seria anunciado. Não lavei as mãos, não peguei minhas ferramentas, apenas me aproximei da cerca viva e vi que ali era um dia de festa. Ouvi quando cantaram em coro que dois e dois eram cinco, que a estupidez era maior, as vivas a sociedade alternativa, que se vive para consertar, que a mente está na imensidão, que pelas vias se escorre o sangue e o vinho, que nem se voa nem se pode flutuar, que o dia é branco, que o jogador conhece o jogo pela regra...

Me agachei perto da mesma brecha que havia olhado no primeiro dia. Havia esquecido do gato, quando ouvi o maior dos miados: Nós gatos já nascemos pobres ...

Voltei imediatamente. Procurei na minha despensa. Peguei caviar-salmão-linguado-meu-melhor-vinho-um-charuto-de-fora-meu-melhor-sorriso-como-se-fosse-o-primeiro-dia-sem-deixar-de-levar-alguns-vinhos-italianos-da-minha-adega-preparei-como-quem-azeita-tudo-toquei-na-campainha-e-dei-as-boas-vindas-quatro-anos-depois.

O vizinho agradeceu. A visita disse: ooooi. Me virei rapidamente, me desculpando por não entrar. Fiz um afago no gato, meio sem graça, e voltei para casa.

Dias depois, o quiproquó nos jornais. As manchetes: A vizinhança desvalorizada. Professor de esquerda com rituais satânicos. Orgia e permissividade. Empresários fogem para Miami. Juiz processa agente do Detran por estar embriagado. Helicóptero com cocaína é da família do senador. Dexter mata Lobão! 


ps. acompanhei todas as notícias. Eu e o gato. O adotei, pelo bem da comunidade. Era o meu pro-brono-especial. Só lamento ele não ter raça alguma

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