A grama do vizinho verdejava sem as
flores malditas. Mas nem sempre fora assim. Alguns anos atrás ele chegara com
apenas uma pequena mudança. Percebi, enquanto verificava a caixa dos correios,
que ele era de parcas posses. Não tinha mais do que um colchão, uma mesa de
quatro cadeiras, uma geladeira velha e seu gato. Lembro que na época pensei em
como ele havia conseguido entrar na nossa vizinhança, mas logo tratei de
esquecer, não parecia que seria permanente.
Dias depois de sua chegada, fiquei
levemente irritado com o som que vinha desse meu vizinho. Parecia que as vozes completavam
a ausência de posses. Eram vozes de muitos e todos falavam com um estranho
sotaque. Me aproximei da cerca viva que nos separava querendo descobrir de que
lugar ele vinha. Não soube discernir totalmente, mas alguma coisa me dizia que
eram nortistas. Não que tivesse descoberto alguma cadência própria. Mas pela
intensidade do barulho, cordas, coros, batuques e pela cor marronzinha do
vizinho, acreditei que ele tinha descido de lá.
Talvez eu até tivesse embebecido mais
minhas rosas, investigado mais um pouco, se não tivesse tido um susto daqueles,
quando o gato do vizinho, desses sem raça definida, escondido por entre os
arbustos, me pegou olhando, como se dissesse, que indiscreto. Tratei logo de
arrumar minhas ferramentas de jardim e voltei para o interior da minha casa.
Higienizei as mãos no lavabo do piso térreo
e lavei o rosto. Se fosse um dia como outro qualquer, como os dias de ontem, teria
passado a loção no rosto, tomado meu leite quente com amêndoas, conferido o
jornal on line italiano, e ido para meus lençóis egípcios, ligado minha
Foscarini e folheado os livros que o arquiteto me indicara para deixar a mão na
mesinha de cabeceira. Seria o sono certo, o sono dos justos. E nunca havia me
falhado.
Uma hora depois, farfalhei os panos,
me descobrindo todo, como se o som que se propagava pelo mesmo céu, meu e do
vizinho, tivesse invadido meu lar.
No outro dia, quando cheguei no escritório,
cheguei engomado, terno em riste, riscado, o mesmo que havia usado para os dias
especiais. Segui corredor adentro, parando apenas para averiguar minha agenda
com a secretária, quando, com a mão já posta na empunhadura da minha sala, ela
disse: O senhor está precisando de algo? Claro que disse não, claro que de forma
ríspida. Apenas não sei se ela percebeu minha hesitação. Mas ela não era paga
para perceber nada, lembrei, enquanto assinalava na agenda, um lembrete de substitui-la.
O caso é que aquele dia bagunçou o
resto do meu tempo. Entre um processo e outro, enquanto despachava, lembrava da
advertência do gato e do olhar, levemente espantado, da secretária, que cuidei
de trocar no dia seguinte.
Em casa, já ambientado, preferi ficar
sem ir ao jardim. Correram dias. Meses até. Nunca fui muito católico, mas
acompanhei, toda noite, o jornal italiano quando noticiou a aposentadoria do
papa alemão. Cheguei a pensar, que tempos loucos esses, em que festejam a saída
de um europeu, salvo de passagem, com extremo bom gosto, pois secretamente me regozijei
quando vi que ele havia usado o mesmo sapato vermelho que comprara para os dias
de verão, ser substituído por um argentino franzino, que falava em marte, que
falava em gays, que falava neles. Daquele dia em diante, preferi os noticiários
ingleses. Estava farto da cobertura italiana.
Eu sabia, pela ancestralidade do meu
nome, que ali, onde eu nasci, não era a minha origem. Cheguei até a pagar, uns
trocos qualquer, ao melhor historiador das origens, queria mandar tecer meu
brasão, em cima da lareira, pelas tecelãs usadas no último desfile prét-a-porter,
mas me neguei a pendurar a renda das paraíbas. Onde eles estavam com a cabeça?
Em meio a tudo isso, tinha o meu
vizinho. Ele ainda existia. Não sei se outros móveis haviam sido despachados no
seu endereço. Mas, com certeza, sua velha mudança ainda estava lá.
Outro dia, esbarrei com aquele
farsante de historiador que havia contratado em frente a área comum do meu
condomínio. Audacioso, me informou sobre seu último artigo publicado, falando
asneiras sobre as origens rurais das famílias que colonizaram meu país. Cortei rapidamente
a conversa, não sem perguntar para que casa ele estava indo. Ele respondeu e eu
senti uma fúria me tomando conta, como se eu reconhecesse as vozes do meu
vizinho.
Nesse dia, voltei ao meu jardim. Queria ouvir, por entre o eco
daquelas parcas posses, se meu nome seria anunciado. Não lavei as mãos, não peguei
minhas ferramentas, apenas me aproximei da cerca viva e vi que ali era um dia
de festa. Ouvi quando cantaram em coro que dois e dois eram cinco, que a estupidez
era maior, as vivas a sociedade alternativa, que se vive para consertar, que a
mente está na imensidão, que pelas vias se escorre o sangue e o vinho, que nem
se voa nem se pode flutuar, que o dia é branco, que o jogador conhece o jogo
pela regra...
Me agachei perto da mesma brecha que havia olhado no primeiro dia.
Havia esquecido do gato, quando ouvi o maior dos miados: Nós gatos já nascemos pobres
...
Voltei imediatamente. Procurei na minha despensa. Peguei caviar-salmão-linguado-meu-melhor-vinho-um-charuto-de-fora-meu-melhor-sorriso-como-se-fosse-o-primeiro-dia-sem-deixar-de-levar-alguns-vinhos-italianos-da-minha-adega-preparei-como-quem-azeita-tudo-toquei-na-campainha-e-dei-as-boas-vindas-quatro-anos-depois.
O vizinho agradeceu. A visita disse: ooooi. Me virei rapidamente,
me desculpando por não entrar. Fiz um afago no gato, meio sem graça, e voltei
para casa.
Dias depois, o quiproquó nos jornais. As
manchetes: A vizinhança desvalorizada. Professor de esquerda com rituais satânicos.
Orgia e permissividade. Empresários fogem para Miami. Juiz processa agente do
Detran por estar embriagado. Helicóptero com cocaína é da família do senador. Dexter
mata Lobão!
ps. acompanhei todas
as notícias. Eu e o gato. O adotei, pelo bem da comunidade. Era o meu
pro-brono-especial. Só lamento ele não ter raça alguma
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