quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Eu sou...


Meu nome é Manuel e eu sou alcoólatra. Hoje são seis anos sem tomar uma gota de qualquer bebida barata ou não. Mas minha dor contabiliza 10 anos. São dez anos que não escuto a barulheira de Ellen ou de João, quando ao chegarem da escola, perguntavam a sua mãe Carmen, minha esposa, papai chegou? Ela, que também já não está no meu cotidiano, dizia sempre aos nossos filhos, ele está quase chegando.  Não por acaso sou contador da firma que fora do meu tio. E por isso não esqueço a contagem de cada dia passado do que aconteceu há dez anos atrás, quando cheguei tarde para o encontro com as crianças, causando espirros na mais alérgica delas, quando disse, desculpem papai, hoje o dia foi longo, foram muitas contas a prestar, que tal irmos todos comermos uma pizza. A criançada adora uma pizza. Carmen não, seu pesar de mais uma noite a dormir com o ronco da minha bebedeira, lhe fazia pensar na farofa de cuscuz e na galinha que passara a tarde toda a temperar. Estava cansada, eu sabia, como sabia também que não adiantava justificar o dia todo, pressionado que estava para pôr ordem nas contas da empresa. Ela não entendia que o fato de ser sobrinho do chefe de tudo, me tributava uma carga maior. E que eu precisava da saída, depois do trabalho, para encontrar com os amigos e sentir que meu corpo era como aquela cerveja aberta, despressurizando o dia. Carmen, conformada com a alegria das crianças, enquanto guardava nas suas gavetas seu próprio desgosto, sorriu e disse naquela voz de mãe, a Ellen e a João, não esqueçam seus casacos, a noite promete chuva. Tentou pegar a chave da perua, que costumava rodar pela cidade, preenchendo de víveres para o consumo da semana, para os tantos jantares não comidos por mim, sem falar nas tantas tralhas das crianças, quando eu disse, não, vamos no meu carro, já está lá fora. Seguimos os quatros e para quem nos viu chegar na pizzaria de Francesca, parecia acompanhar os sorrisos dos meus filhos, como a acrescentar, que bela é essa família. Enquanto o pedido era feito, com as arengas sobre os sabores, pedi um balde de long neck, sob o olhar cansado da minha mulher e me servi antes de todos. A pizzaria de Francesca era o nosso cantinho, sempre íamos, tinha balanço, quadros de pintar e tantas outras distrações para os casais com filhos, enquanto esperavam pelo sabor quentinho vindo do forno de lenha. Enquanto a pizza não estava pronta, ligeiramente consumi meu balde, enquanto Carmen se serviu de suco de abacaxi com hortelã. Ela estava em outra das suas loucas dietas, emagrecendo a olhos vistos, tão esbelta quanto no dia em que me lembro de ter me apaixonado por ela. Durante o tempo do retorno do garçom, não falamos muito, parecia que nem era necessário, quando muito as perguntas de sempre, o que faremos no final de semana, você viu o carro novo do José, estou pensando em fazer yoga, me matriculei num curso de arte daquele Instituto Multicultural da Rua Cinco. Para tudo que escutava, sem ouvir, eu balançava a cabeça e dava a maior força, até que o silêncio tomava conta de mim e eu apenas colhia as palavras de Carmen para poder separá-las em letras de quatro em quatro. Parecia que os números não ficavam no escritório, mas estavam enterrados na minha consciência. A pizza chegou, pedi mais um baldinho, que veio suado, quase como se me prometesse um refrescamento íntimo. Juntos, depois deles se alimentarem, nos reunimos para irmos para casa, acenamos para outros casais conhecidos, e pegamos a estrada. Na altura da Rua São Jorge, já garoando, virei para a direita sem ligar a seta. O caminho era conhecido e meu desejo era deitar meu corpo, pois na horizontal os números não me incomodavam. Não lembro de mais nada depois daquela curva. Acordei no hospital, cheio de curativos leves, cabeça ainda meio zonza, que pareceu entrar em curto-circuito, quando o médico, apressado em atender os outros feridos, me deu alta, não sem antes dizer, sinto muito. Só o senhor sobreviveu ao acidente. Do meu lado, ouvi gemidos. Pareciam também terem sobrevividos ao crash, apesar de suas ataduras terem o alcance de uma múmia. A enfermeira, enquanto eu catava os rebotalhos da roupa do escritório, chegou, com passo macio, perguntando se poderia ligar para alguém da família para que me acompanhassem em casa. Eu só pensei que minha família éramos nós quatro. Agradeci. E sai. No primeiro dos bares, logo na rua ao lado direito do hospital, parei e bebi meus mortos. Os bebi por quatro anos seguidos. E na conta dos quatro anos, quando lembrei que a-n-o-s significa a conta perfeita na minha mente, parei de beber. Hoje fez seis anos. S-e-i-s-a-n-o-s. E me sinto completo na incompletude. É isso.

Os aplausos foram fortes. E ele me pareceu precisar de muita matemática das palavras perfeitas, porque enquanto ouvia o cumprimento dos outros, seu rosto pedia desesperadamente um trago, para afoga-lo num copo qualquer.

A história que veio depois da dele parecia repetir um refrão que cheirava a cravos e defuntos. Assim como as próximas narrativas. Todos diziam o próprio nome, seguido do Eu sou alcoólatra.

E eu pensava no Eu sou como a primeira das coisas a serem ditas naquele círculo de cadeiras. Todos sabiam que as histórias narradas ali, embaixo daquelas telhas vermelhas, seriam ecoadas apenas nos ladrilhos desbotados, riscados pelo arrastar de tantas sessões e pelo passo pesado de todos, como se o ritornelo circular daquela disposição de corpos, criasse uma sinergia em que simultaneamente as leituras sobre o passado fizesse uma combinatória singular sobre a posteridade das experiências.

O instrutor, que ouvia atentamente a todos, ele também um ex, olhou para mim, que ali estava pela primeira vez e perguntou se eu queria partilhar.

Cruzei minhas pernas, passei, nervosamente, os dedos por entre os cabelos e falei bem baixo meu nome. Quando articulei o Eu sou... entendi que aquele grupo não me pertencia. Que eu, ainda, não poderia me nomear. E na ausência de mim, juntei minha bolsa e o guarda-chuva que havia deixado no chão, ao lado da minha cadeira, saindo apressada, sem nem ao menos me desculpar ou dizer até logo.

Demorei para achar as chaves do carro na urgência toda que me habitava. Ao dar partida no motor, soou o rádio, na voz de Gal, “um dia eu volto, talvez eu volte, um dia eu volto, quem sabe...”

Procurei o boteco perto do hospital que Manuel falou e dessa vez, como há muito não fazia, pedi duas doses duplas com gelo e limão. D-u-a-s-d-o-s-e-s-d-u-p-l-a-s-c-o-m-g-e-l-o-e-l-i-m-ã-o. 4 de 6. Os anos que eram dele, contados na dor de seu relato, me pareceu a soma perfeita, o alinhamento de t-u-d-o.

            Ou quem sabe, nada. N-a-d-a.



Um comentário:

  1. Outro "Li outro dia", vou me repetir e dizer que adoro os encontrar em minha página do Face. Leio e releio, procurando o que dizer e não encontro as palavras certas. Só consigo pensar em contas imperfeitas.

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