Ela era
a senhora do mundo. Semeava a terra, o vento, o ar e o fogo, não necessariamente
nessa ordem. Apesar do saber só ser da Senhora, ela era magnânima. Instituiu como
A primeira reforma, a cartilha a ser doada para todos. E nela, doou, como quem
multiplica a vida, a consciência para todos. Disse que os tempos de outrora era
tempos de desordem, tempos de amores vis, de quiproquós insignificantes, de
colonização da legião, das paradas de multidões sem cerne, só carne sem o dom
da vida, de corpos sem espíritos.
Era preciso,
aprendi pequenina, não pelos números de anos, mas pela ausência de memória, que
a vida de outrora, do Antes de tudo, as pessoas tinham a barriga cheia, mas
eram vazias do Espírito. Não se conectavam com a terra, com as flores, com as
árvores, que deviam crescer, lado a lado, para que a colheita, de cada uma das
culturas, não se misturasse com as outras. Os campos, de terra e de água,
fecundadas, era verdadeiras miragens, coisas para um homem só.
Eu cresci
colhendo soja. Minha mãe colheu soja também. Soube que minha avó idem.
Das antigas escrituras, que achei guardada enterrada ao lado do túmulo da minha bisavó, cuja letra até hoje sinto dificuldades em decifrar, tinha mais páginas do que cinzas.
Não que
eu tivesse desejado profanar o corpo de quem um dia fora o depósito de algo
maior. Não fui eu que perscrutei a superfície das lápides remotas. Era mais uma
das reformas da Senhora. Aqueles cujo batismo não foi no Templo Divino, que
eram os chamados seguidores da legião, que pariram sem fé, que deram sem
autorização, que não procriaram na Lei, que não racharam os seios aos filhos, que
afrontaram o locatário do divino... Desculpe, pela falta de todos os registros,
eu ainda sou da quarta série. Não lembro de todos os Mandamentos. Eu apenas
passava por lá, quando as máquinas começaram a revolver a terra, desocupando o
solo profano, quando vi, que ao lado da terra revolvida, brotava como que fosse
o pecado das profundezas todas, centenas de livros e todas eram assinaladas
pelo nome da minha bisavó.
Sai ligeira
de lá, com o catecismo embaixo do braço, já sentindo o corpo em brasa, como se
fosse padecer pela ausência da Senhora. Juro, Senhora, juro aqui, nesse
depoimento, que foi assim. E, por essa falta, me martirizo.
Acho que
quando voltei ao desterrado, voltei porque estava em febre. Não tive intenção
de ir contra as reformas. Sei que o espirito fica abaixo do meu peito. Sei que
preciso ouvi-lo, mas do que a minha cabeça, que insiste em incendiar minhas
noites. Sei também que minha mente deve saber de onde o Espírito me chega. Eu
sei de tudo isso, minha Senhora. Nem fui a primeira da classe. Demorei um pouco
para entoar os cânticos. Sei que errei em algumas falas. Mas eu sempre semeie
aquilo que me foi ensinado.
Primeiro
a Senhora. Segundo Ele. Terceiro a Família.
Mas ela
era minha bisavó. Era família. E não sabia do seu passado pregresso. O
importante não era o presente, Senhora? Pensei que indo lá, sabedora da devoção
das minhas origens familiares inteiras, estava preservando o primeiro dos
mandamentos.
Sei qual
o meu lugar, sei do que ouvi da minha mãe, e do pouco que pude escutar da minha
avó. Já estou perto de fazer filho, queria poder dizer a ele ou a ela, da
origem de quem plantou num campo inteiro e comeu da sua mão. Queria dizer ao
meu filho, cujo pai seria da sua escolha, que a terra plantada e a colheita
levada, era o inteiro da vida da nossa família.
Mas eu não
pude deixar de ler. Mas eu não
pude deixar de ler. Li tudo. Li sobre um tal de Pessoa. Saramago. Manoel de
Barros. Orwell. Marx. Rowling.
Huxley. Palahniuk. Collins. Foucault. Dick. Loureiro. Assaré. Dickens.
Sade... li todos no máximo de dois dias, como se tivesse furtado algo que meu
espírito devolveria depois de um fim de semana.
Durante esse tempo, não comi o
fruto da terra, não bebi água. Me ausentei do grupo das queimadas e tampouco
consegui respirar como antes. Sei que meu tempo se foi. Já gastei o quinto da
hora me dada, mas agora estou pronta para ir. Liguem as máquinas. Que o filho
que hoje será preservado da minha morte, tenha todos os elementos. Os que a
Senhora professa e os que acredito serem minha herança.
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