sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Ressuscita-me

Sozinha, ao seu lado, enquanto toma a sua cerveja, pedindo, mulher, seja boa, traga outra, fico imaginando, por quantos acertos tão mais, terei que responder. Você me olha de lado, dizendo que meu penteado tá chique, mas era o mesmo de onze meses atrás e agora sim. Espere mais um pouco. Disse tudo isso, sem nem ao menos olhar, enquanto trocava os canais.

Eu sabia, quase sem saber, que o tempo passado, oito vezes oito, seria a nossa conta do infinito, mas não estava pronta ainda por me dar por vencida. Nem sei que guerra era essa que travei por tanto tempo. Nosso melhor de nós já era falecido. Ele e sua guitarra azul. Morreu de over, me disseram, naquela que era a melhor das estações. E eu sem saber querendo ver aquela berrante tatuagem de coração vermelho coroado de espinhos, apenas desejando, bata novamente por mim, por favor. Ele viajou cedo e deixou suas mochilas todas, no mesmo quarto que hoje é usado para as costuras que faço, tentando aqui e ali, o trocado para o pior dos meus vícios.

No íntimo, daquela intimidade que nem se confessa em pesadelos, pedi a Deus, me leve antes, não me deixe sem o dia em que a falta supurasse todos os meus quereres, como se ao pedir tanto, fizesse do outro, lugar de silêncio, de todo silêncio que aprendi a conviver com ele, que me pede outra cerveja. Sabia que a fala terminaria logo, no refrigerador, tinha apenas um par delas.

Mas ele nunca foi de muitas palavras. Quando muito dizia, Deus proverá. E assim foi me fiando e eu, toda fiada, como quem fizesse do dia a dia a coleção dos melhores retalhos, me ocupasse apenas a coser.  E olha, que a colcha daria para cobrir a cama de muitos de mim, apenas de mim, como se a colcha e a prateleira fossem a soma da minha vida toda.

Como no dia em que ele, em meio a festa do milho, na fazenda antiga, quando todos celebravam a chuva, olhou para mim e disse, quero fazer uma fazenda com você, daquelas enfeitadas de mil tricôs, bordados e ardores. Logo eu, que só gostava de pinturas, sonhava em ser artista, queria que meu rosto fosse a tela em branco, cujo desenho, pudesse ser rabisco, pudesse ser estilo, pudesse ser o milagre que me foi negado no dia em que nasci. Da fazenda dele, sonhei com milhões de paisagens. Me senti terra fecundada. E me despedi dos mil artistas que me viriam.

Já levo, digo da cozinha, enquanto destampava a saideira. Tinha, antes de pensar em somar, apenas um par. Ao entregar, em mãos, boa mulher que sou, pensando na fazenda que deixamos para trás, eu e ele, sem o som da guitarra que alegrou e preocupou nossos dias, apenas eu e ele, despido de filho, sem os netos a acenar com a posteridade, sem as fogueiras, o milho e o céu, solucei, como se tivesse, entre uma ida e outra, entre a cozinha e a sala, emborcado o múltiplo do bebido da vida dele inteira.

Fiquei embriagada, tropecei sobre ele e o cortei na mão em que ele esperava ser servido. Ele, arquejando, disse, mulher, você me cortou, e eu apenas disse, me dê um gole, pintando, finalmente, meus lábios de rubro.

E foi assim, não como era uma vez, sem contos nenhum, que teci mais uma peça, depois de décadas, para a colcha que desconfiava dos acasos, como se a pintura, enfim, tivesse a mão do sentido ou apenas mais uma peça cerzida...


Ps. eu teria que terminar, mais tenho problemas. Mas pela primeira vez, a última das cervejas abri para mim, apesar de bebermos os dois. E nunca me senti tão maquiada.


Um comentário:

  1. Sempre fico ansiosa quando me deparo com um "Li outro dia". Clico e agradeço a conexão rápida e é sempre um deleite, uma inspiração. A de hoje me emocionou, e estou me acostumando com um deixar fluir as sensibilidades, sem perguntas.

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