sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Lembrar de esquecer, esquecer de lembrar


Quando irei me desocupar disso tudo? Tento o tempo todo esquecer. Esforço-me a esquecê-la e quando me entretenho em meio aos meus livros todos e aos discos que vou espalhando ao redor da minha cama, um trecho, um refrão, me levam de novo a você, a nós. Com que permissão invadiu assim a minha vida, se você não pretendia ocupar-se dela? Eu, por certo, não saberia precisar o momento em que aconteceu, talvez, tenha sido no dia em que me pediu para desembaraçar os seus cabelos, tanto que você gostava que todos o tocassem, como se isso não significasse nada fora do ordinário, pois parecia que, ao fazê-lo, com seu pescoço debruçado em minhas mãos, numa sensação urgente de prazer, não sei se minha, se sua, se nossa, seria o sinal de perigo que deveria ter posto a mim mesma. Pare Felipa, vinham as letras garrafais em minha mente.
Mas éramos amigas e as amigas se tocam. Apenas não sabia que as minhas mãos tinham uma vontade própria, que minha razão estava no estômago, que minha alma estava nas pernas trêmulas. Que as mesmas mãos que delicadamente escovavam seus longos fios, faziam uma força tremenda para não pesar sobre seu corpo, arrumando-a e me desarrumando toda, nessa mesma cama que, hoje, fico treinando o esquecimento, ao escrever. As mesmas mãos que desavisadas, se meteram por entre os seus cabelos, sentindo sua nuca. Bem que você poderia ter se afastado, ao invés de reclinar-se sobre mim, retirando a blusa, para que ficasse mais confortável, como me disse na ocasião. Confortável, para quem? Lembro que pensei, ao mesmo tempo em que cuidava de penteá-la. Não sei precisar o momento em que deitamos juntas na cama, em que me vi também despida, esqueço-me das etapas, mas a lembrança do sentir, essa sim, está em mim, como uma coisa ruim que preciso enxotar, exorcizando o cheiro da sua pele, o gosto da sua boca, o deslizar de nós duas, juntas, em meio àquela cama de solteiro.
Mas não é disso que trata esse texto, essa foi o marco das lembranças, a mais custosa de expurgar. As outras, também são difíceis de esquecer, difícil esquecer os momentos de quando me roubou beijos no carro do seu namorado, de quando me lançou nas paredes do banheiro do restaurante onde costumávamos ir, dos encontros de fim de tarde, regados a descobertas, descortinamentos e desvarios. Já são anos de contabilidade dessas lembranças, mas parece que foi ontem, assim como o dia em que me deixou, em que disse que estava apaixonada por outra, que não me amava mais. Eu permiti que você destruísse pedaços de mim, que minha razão voltasse ao lugar que antes lhe era de costume, que minha alma retornasse ao seu centro, que minha vontade fosse podada e amordaçada. Já faz tanto tempo, mas nunca me lembro de esquecer, de esquecer o caos, a dor, a saudade, o desejo, as vontades, os planos todos...  
Estabeleci prazos para o meu esquecimento, mas sempre que me aproximo deles, no meu esforço de lembrar, os esqueço. Você foi a minha primeira paixão, o meu primeiro amor, a minha primeira mulher. Não que eu não tenha experimentado outros corpos, mas procurava em outros, os nossos, embolada que estava nas minhas lembranças.
Na lembrança de apagá-la, destruí-la, implodi-la nos braços alheios, mais me remetia aos contornos seus, as risadas, as confidências, os achaques, os ciúmes, os nossos gozos, as nossas bocas juntas, de mim, inteira, ao lado seu.
Mas escrevo para esquecê-la e lembro-me o tempo todo de fazê-lo, ainda na mesma cama de solteiro, sendo que, dessa vez, senhora das minhas letras garrafais: JÁ NÃO ESTOU EM CACOS, JÁ SEI SORRIR QUANDO A VEJO EM COMPANHIAS OUTRAS, JÁ LEMBRO QUE NÃO A AMO MAIS, APENAS ESQUEÇO-ME DE QUERÊ-LA TANTO...
QUE MERDA! MALDITAS RETICÊNCIAS...

Ps. Havia esquecido esse texto nos arquivos que lembrei de apagar.

8 comentários:

  1. Preciso lembrar de esquecer... isso é muito difícil, talvez seja o fato de ainda não ter entendido que não o amo mais e por acomodar-me a seu carinho ainda lembro-me que não quero esquecer.
    Valdenia Felix

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  2. "Já faz tanto tempo, mas nunca me lembro de esquecer, de esquecer o caos, a dor, a saudade, o desejo, as vontades, os planos todos... "

    Me vi nesse texto!

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  3. É um texto que fala de lembranças de sensualidade e não apela para a vulgarização. Um texto belo que exprime coisas íntimas do ser humano.

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  4. Belo texto, você devia juntá-los, os esquecidos por aí, e publica-los.Mas, diga-me bem baixinho:inspirou-se em alguém?

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  5. Amei. A partir de hoje sua mais nova leitora viciada. rs..

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  6. Mas as músicas carimbadas com o seu rosto, alguns trejeitos que sem perceber, também assimilei, esses perdurarão, mesmo quando a memória já tiver ido embora.São as fendas do coração. Nada a fazer.

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  7. Ácido e ocioso. Ondulante e muito, mas muito asfixiado. Desejos não expurgados, Elisa M?

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