Sempre temi que quando
chegasse esse dia, acabaria por não sentir nada. Talvez por isso tenha gasto
minha vida em excessos, em idiossincrasias, apostado na boemia, na boa
companhia e em todas as mulheres que passaram por minha vida. Mas isso não
importa mais. Diria até que o espaço não é um dos piores em que já estive, já não
sinto frio, quiça fome ou aquela vontade feroz de beber o mundo me alimentando
das tempestades.
Aqui é escuro e já me permito parar de pensar nela, ou melhor, parar de pensar no que fazer com ela, já que não
posso mais ficar à espreita pelas esquinas e bares, na esperança de vê-la
passar. Parar de pensar nela seria como fazer tudo de novo uma segunda, quinta
ou décima vez. Se tivesse ainda de posse da minha escrivaninha ou dos meus
pergaminhos, escreveria para os meus amigos sobre o que fiz, escreveria
como um alerta, como um deslumbre, como um desvario, afinal, sempre achei que
terminaria meus dias com todos eles, embalados que ficávamos nos botecos
da cidade, cada um no seu batuque específico, na sua bebida preferida e nos
lances de nossos carteados.
Não que eu não tenha me casado. Lourdes era
realmente uma mulher de verdade, pena que não pude ser para ela o outro da música.
Nunca me faltou o guisado de bode, o feijão de corda, a roupa, caprichosamente,
engomada, o sapato sempre engraxado, o caldo de mocotó ou a cabeça de galo do
dia seguinte. Pena que nossa semente nunca germinou, ela hoje não estaria
sozinha. Mas também não imagino com quem esteja agora. Tínhamos entrado, depois
de uma década e meia de casados, num ritmo cadenciado, sem grandes trinados e
nossos passos, juntos, eram sempre harmoniosos como uma valsa. Era uma música
que um homem precisa ter à mão ao procurar o sossego, quando, ziguezagueando ou
não, consegue achar a porta de casa e sentir que lá é o seu castelo, lá era um
rei. Era nesse lar, que podia desafogar da minha sede de água.
Sempre associei Lourdes àqueles
açudes cuja pior das secas não ofereceria perigos. E por alguns dias,
mergulhava naquela água calma, funda, e me refazia das minhas noites felinas, procurando
a quentura do seu colo. Meus amigos até me invejavam, eles não tinham uma
Lourdes para quem voltar. Que deus a abençoe. Sei que ele vai me ouvir, caso São
Pedro me abra suas portas.
Mas homem é bicho danado e
nunca neguei minha masculinidade. Quando meus olhos injetados das noites
viradas se recuperavam, quando a água não saciava mais minha sede, saia de
novo, todo alinhado, com goma no cabelo, ainda luzidio, a cantarolar por baixo
dos postes de minha cidade, como quem tivesse a dizer, saiam da frente, o rei
vai passar e ele tem sede, sede de cachaça.
Foi numa dessas saídas que a
conheci. Tinha vindo da cidade grande, alguns diziam até que vinha de terras
estrangeiras e que em sua mala tinha um diploma de artes. Parecia uma artista
de fato, mas não por causa de uma beleza estonteante, mas pela forma como
puxava a cadeira na mesa do Bar de Seu Vicente, ao lado da nossa cativa, e acendia seu
cigarro. Ficamos todos animados em saber mais sobre ela e, sem combinação
nenhuma, mudamos a natureza de nossas apostas, já não interessava o campeonato de
futebol, as lutas livres, as rinhas de galo. Nossa aposta era ela, quem conseguiria
primeiro. Não faltavam visitas à sua mesa, gracejos, gabolices, entre outras
coisas. Eu na minha mesa estava e nela ficava. Mas não sem perceber que ela
nunca pagava nenhuma das bebidas pedidas, não sei se pelos meus colegas que
viviam a lhe oferecer drinks ou se pelo Seu Vicente, que esquecia a tripa
assada na frigideira, a famosa língua de boi na panela e o fogo do churrasco
sumir por si só.
Ficava a espreita-la, numa
posição que não oferecesse garantias da minha curiosidade. Afinal, estava ali
para estar com meus amigos e voltar para minha Lourdes. Talvez tenha sido isso,
talvez tenha sido... Não era nem mais nem menos do que meus companheiros de
mesa. Mas um dia, levantando-se de sua cadeira, me interpelou e disse, como se
fosse hoje ainda, percebi que gostas de cachaça, tenho em minha casa, uma que
trouxe do México, um destilado especial... Nem esperei que o convite se concluísse,
fui logo me despedindo e de braços dados, nos dirigimos para sua casa.
Não era bem um lar, não como
o do meu reino, era colorido demais, iluminado de menos, cheio de lenços, fitas
e uns objetos estranhos dispostos sem ordenamentos pelos poucos ambientes da
casa. Pensei, cá comigo, seria a sua arte? Mas logo me desabonei daquele
exterior que pertencia a ela e tratei de achegar nos braços seus. Não reconheci
a mim no enlaço com ela. Na forma como, afogueados, nos livramos das roupas e
eu das minhas vergonhas. Senti-me desalojado, porque começamos uma dança de
corpos que quem guiava os passos não era eu, nem o ritmo nem a batucada, que em
nada lembrava a valsa dos meus dias. Pensei que isso não era certo, pois homem não
podia se deixar guiar. Mas atônito que estava, emborquei a tequila, que descia
como pimenta, caindo nos seus enlaços. Ela não se fez de rogada, tirou o que restava das minhas
roupas, agora desalinhadas, subiu no meu colo e me comeu. Comeu como quem tem a
fome de mil dias, arrochando meu pescoço e mastigando minha virilidade. Não tive
controle nenhum. Era dela e somente dela, que ora me apertava, ora me sugava,
ora me bebia todo. Entendi a arte e o inusitado da vida, quando nos resumimos a
uma só parte do corpo, que no corpo dela, lhe pertencia totalmente.
Fui embora tonto, amassado,
desmamado, tempos depois, em direção a Lourdes. E desfalecido, me deitei. Quando
acordei, não quis beber café ou água. Lourdes me achou estranho, como também
estranhou, quando ao deitarmos, mais a noite, subindo por cima dela, juntei as
suas pernas para penetrá-la, como se pudesse recriar o aperto e o arrocho da
minha noite de tequila. Mas Lourdes era água. E minha sede era de aguardente.
Voltei ao bar, sentei-me à
mesa, ao lado dela, mas ela já não me via, entretida que estava com meus amigos
todos. E foi assim, durante dias, que fiquei perdido, perdi a ela, perdi meus amigos
e perdi a mim. Cada um deles tinha aquele mesmo olhar que reconhecia quando
fazia a barba de frente ao espelho. Vidrado, injetado e vazio de alguém que
tinha misturado todos os drinks na esperança de sentir o gosto daquela bebida,
daquela mamada.
Os dias foram se tornando longos,
a noite mais longa ainda. E eu não pude mais esperar. Queria, novamente, o
conforto do meu castelo, mas lá, já não era rei, era um desapropriado,
desapropriado de mim mesmo. Foi quando decidi dar cabo nisso tudo e cá estou,
depois das rezas e dos choros todos, aninhado nesse caixão, na vontade de
sentir, em tão pequeno espaço, abaixo de sete palmos, o arrocho da braçada de
pernas daquela mulher bezerra. Aquilo era que era mulher de verdade. E eu, já não
era homem nenhum.
Adorei, parabéns! :)
ResponderExcluirUffa... Respiração por favor, volte! adorei!
ResponderExcluirUau! :D
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