sexta-feira, 14 de setembro de 2012

A mulher bezerra




Sempre temi que quando chegasse esse dia, acabaria por não sentir nada. Talvez por isso tenha gasto minha vida em excessos, em idiossincrasias, apostado na boemia, na boa companhia e em todas as mulheres que passaram por minha vida. Mas isso não importa mais. Diria até que o espaço não é um dos piores em que já estive, já não sinto frio, quiça fome ou aquela vontade feroz de beber o mundo me alimentando das tempestades.
Aqui é escuro e já me permito parar de pensar nela, ou melhor, parar de pensar no que fazer com ela, já que não posso mais ficar à espreita pelas esquinas e bares, na esperança de vê-la passar. Parar de pensar nela seria como fazer tudo de novo uma segunda, quinta ou décima vez. Se tivesse ainda de posse da minha escrivaninha ou dos meus pergaminhos, escreveria para os meus amigos sobre o que fiz, escreveria como um alerta, como um deslumbre, como um desvario, afinal, sempre achei que terminaria meus dias com todos eles, embalados que ficávamos nos botecos da cidade, cada um no seu batuque específico, na sua bebida preferida e nos lances de nossos carteados.
 Não que eu não tenha me casado. Lourdes era realmente uma mulher de verdade, pena que não pude ser para ela o outro da música. Nunca me faltou o guisado de bode, o feijão de corda, a roupa, caprichosamente, engomada, o sapato sempre engraxado, o caldo de mocotó ou a cabeça de galo do dia seguinte. Pena que nossa semente nunca germinou, ela hoje não estaria sozinha. Mas também não imagino com quem esteja agora. Tínhamos entrado, depois de uma década e meia de casados, num ritmo cadenciado, sem grandes trinados e nossos passos, juntos, eram sempre harmoniosos como uma valsa. Era uma música que um homem precisa ter à mão ao procurar o sossego, quando, ziguezagueando ou não, consegue achar a porta de casa e sentir que lá é o seu castelo, lá era um rei. Era nesse lar, que podia desafogar da minha sede de água.
Sempre associei Lourdes àqueles açudes cuja pior das secas não ofereceria perigos. E por alguns dias, mergulhava naquela água calma, funda, e me refazia das minhas noites felinas, procurando a quentura do seu colo. Meus amigos até me invejavam, eles não tinham uma Lourdes para quem voltar. Que deus a abençoe. Sei que ele vai me ouvir, caso São Pedro me abra suas portas.
Mas homem é bicho danado e nunca neguei minha masculinidade. Quando meus olhos injetados das noites viradas se recuperavam, quando a água não saciava mais minha sede, saia de novo, todo alinhado, com goma no cabelo, ainda luzidio, a cantarolar por baixo dos postes de minha cidade, como quem tivesse a dizer, saiam da frente, o rei vai passar e ele tem sede, sede de cachaça.
Foi numa dessas saídas que a conheci. Tinha vindo da cidade grande, alguns diziam até que vinha de terras estrangeiras e que em sua mala tinha um diploma de artes. Parecia uma artista de fato, mas não por causa de uma beleza estonteante, mas pela forma como puxava a cadeira na mesa do Bar de Seu Vicente, ao lado da nossa cativa, e acendia seu cigarro. Ficamos todos animados em saber mais sobre ela e, sem combinação nenhuma, mudamos a natureza de nossas apostas, já não interessava o campeonato de futebol, as lutas livres, as rinhas de galo. Nossa aposta era ela, quem conseguiria primeiro. Não faltavam visitas à sua mesa, gracejos, gabolices, entre outras coisas. Eu na minha mesa estava e nela ficava. Mas não sem perceber que ela nunca pagava nenhuma das bebidas pedidas, não sei se pelos meus colegas que viviam a lhe oferecer drinks ou se pelo Seu Vicente, que esquecia a tripa assada na frigideira, a famosa língua de boi na panela e o fogo do churrasco sumir por si só.
Ficava a espreita-la, numa posição que não oferecesse garantias da minha curiosidade. Afinal, estava ali para estar com meus amigos e voltar para minha Lourdes. Talvez tenha sido isso, talvez tenha sido... Não era nem mais nem menos do que meus companheiros de mesa. Mas um dia, levantando-se de sua cadeira, me interpelou e disse, como se fosse hoje ainda, percebi que gostas de cachaça, tenho em minha casa, uma que trouxe do México, um destilado especial... Nem esperei que o convite se concluísse, fui logo me despedindo e de braços dados, nos dirigimos para sua casa.
Não era bem um lar, não como o do meu reino, era colorido demais, iluminado de menos, cheio de lenços, fitas e uns objetos estranhos dispostos sem ordenamentos pelos poucos ambientes da casa. Pensei, cá comigo, seria a sua arte? Mas logo me desabonei daquele exterior que pertencia a ela e tratei de achegar nos braços seus. Não reconheci a mim no enlaço com ela. Na forma como, afogueados, nos livramos das roupas e eu das minhas vergonhas. Senti-me desalojado, porque começamos uma dança de corpos que quem guiava os passos não era eu, nem o ritmo nem a batucada, que em nada lembrava a valsa dos meus dias. Pensei que isso não era certo, pois homem não podia se deixar guiar. Mas atônito que estava, emborquei a tequila, que descia como pimenta, caindo nos seus enlaços. Ela não se fez de rogada, tirou o que restava das minhas roupas, agora desalinhadas, subiu no meu colo e me comeu. Comeu como quem tem a fome de mil dias, arrochando meu pescoço e mastigando minha virilidade. Não tive controle nenhum. Era dela e somente dela, que ora me apertava, ora me sugava, ora me bebia todo. Entendi a arte e o inusitado da vida, quando nos resumimos a uma só parte do corpo, que no corpo dela, lhe pertencia totalmente.
Fui embora tonto, amassado, desmamado, tempos depois, em direção a Lourdes. E desfalecido, me deitei. Quando acordei, não quis beber café ou água. Lourdes me achou estranho, como também estranhou, quando ao deitarmos, mais a noite, subindo por cima dela, juntei as suas pernas para penetrá-la, como se pudesse recriar o aperto e o arrocho da minha noite de tequila. Mas Lourdes era água. E minha sede era de aguardente.
Voltei ao bar, sentei-me à mesa, ao lado dela, mas ela já não me via, entretida que estava com meus amigos todos. E foi assim, durante dias, que fiquei perdido, perdi a ela, perdi meus amigos e perdi a mim. Cada um deles tinha aquele mesmo olhar que reconhecia quando fazia a barba de frente ao espelho. Vidrado, injetado e vazio de alguém que tinha misturado todos os drinks na esperança de sentir o gosto daquela bebida, daquela mamada.
Os dias foram se tornando longos, a noite mais longa ainda. E eu não pude mais esperar. Queria, novamente, o conforto do meu castelo, mas lá, já não era rei, era um desapropriado, desapropriado de mim mesmo. Foi quando decidi dar cabo nisso tudo e cá estou, depois das rezas e dos choros todos, aninhado nesse caixão, na vontade de sentir, em tão pequeno espaço, abaixo de sete palmos, o arrocho da braçada de pernas daquela mulher bezerra. Aquilo era que era mulher de verdade. E eu, já não era homem nenhum.

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