terça-feira, 18 de setembro de 2012

O letreiro



Todo comecinho e metade do ano, em frente ao portão central, eles colocavam aquela faixa reluzente, com letras grandes. Sempre dava uma paradinha, freando minha bicicleta, e observava o movimento, do vai e vem dos preparativos. Mas nunca podia me demorar muito, sempre tinha um serviço ou outro para fazer, graças a Deus e, naquele dia, tinha que ir terminar de botar o piso na casa de Dona Stela.
Dona Stela era diferente das outras patroas para quem já trabalhei. Na casa dela, mais do que enfeites, havia livros, muitos livros, livros na cozinha, livros na sala, livros no quarto do quintal. Eu nunca entendi como uma pessoa só podia ter tanto livro. Às vezes, eu não me continha e perguntava: a senhora já leu isso tudinho? Ela apenas sorria.
Na hora do almoço, Dona Stela segura um garfo com uma mão e a outra fica ocupada passando folha por folha. Duas vezes por ano, ela me chamava para fazer consertos na sua casa, ora para pintar as paredes, ora para aumentar a casa que já era grande. Era sempre antes da chegada de seus netos.
Mas, entre uma empreitada e outra, eu sempre ia lá aos finais de semana, fazer um servicinho ali, outro acolá. Nem me incomodava quando me chamava aos domingos, porque sempre depois do arrumado, tinha um cafezinho adoçado com histórias de sua juventude. Eram tantas histórias, mas tantas, que eu perguntava, ora Dona Stela, se a senhora gosta tanto de livro, porque não escreve um contando tudo isso. Dona Stela sorria e dizia: Seu Raimundo, algumas pessoas nascem para escrever, outras para ler, porque nascem para amar os livros. Eu nasci e cresci para amar o que outras pessoas produziram com tanto amor.
Sempre me despedia pensativo dessas nossas conversas. Um dia teria coragem de contar a ela o que eu não sabia que poderia amar. Gostava das coisas bonitas, mas nem sempre as entendia. Toda vez que pegava em mãos um pincel mais fino para fazer o recorte e os detalhes das pinturas nas paredes, portas e janelas, ficava imaginando que um dia iria botar meus pensamentos pintados. Eles já existiam na minha cabeça, eram tantas as imagens, que associava às modinhas que criava, mas que o tempo cuidava de apagar. Já não era menino moço e minhas costas já estavam mais do que arqueadas. Tinha as contas de casa para pagar, meus filhos para mandar para escola, minha mulher, que nunca satisfeita, reclamava das minhas adorações e não entendia, por que, de vez em quando, eu tinha que tirar o cheiro de bode nos banhos do mar.
Era fins de janeiro e mais uma vez passei em frente ao portão da escola. O letreiro já tinha sido terminado e parecia que naquele vai e vem já tinha o anúncio de mais uma entrada no ano. Mas não tinha tempo para isso, tinha que ir mais cedo à casa de Dona Stela para fazer a lista de compras do resto do material. Fui encontrá-la no quarto dos fundos, já rodeada de seus amores, sentada naquela mesinha antiga, que não cabia companhia nenhuma. As cadeiras estavam ocupadas de torres de livros, como aquelas torres de baralho, via a hora cair tudo em cima dela. Mostrei minhas medidas, que tinha aprendido na urgência das necessidades, com meus números caprichosamente desenhados. Não sabia fazer as contas que via meu menino, quando voltava da escola, escrevendo em seu caderno de tarefas, mas sabia quantos metros e todas as medidas de cerâmicas para assentar numa sala, parecia quase coisa de magia, eu olhava, é já sabia quantas caixas seriam necessárias comprar.
Dona Stela parecia que não tinha muita pressa. Foi puxando conversa e me mostrando umas fotografias de revista, dizendo: Seu Raimundo, quero dessa aqui, anota aí nas suas medidas, que quero uma cerâmica vitória, fosca e com aderência. Dessa cerâmica eu não conhecia não, mas também era tanta novidade no mercado. Mostrei minha folhinha a ela e disse, Dona Stela, não me ignore não, mas a senhora podia escrever esse nome aí que mostro na casa das ferragens, para saber se tem desse modelo. Não sei por que, mas ela ficou parada me olhando, como se pela primeira vez tivesse me visto ou como se eu despertasse nela o que o letreiro fazia comigo. Ela escreveu na folha e mandou dizer que depois acertava a conta na loja. Eu disse, tá bom Dona Stela.
Terminei o serviço duas semanas depois do previsto. A danada da cerâmica era mais delicada para assentar. Mas Dona Stela ficou satisfeita com o resultado. Quando já estava fazendo a manutenção do prédio de Seu Pedro, recebo uma ligação de Dona Stela dizendo que eu passasse lá, que queria me mostrar umas coisas. Claro, Dona Stela, dou uma passadinha aí, depois da hora do almoço.
Ela estava na mesma mesinha do quarto dos fundos, mas as cadeiras estavam todas desocupadas. Mandou que eu puxasse uma, sentou comigo, e disse: a partir de hoje, tire todo dia, meia hora do seu almoço, que vou lhe mostrar como ter amor aos livros. Eu fiquei nervoso, assustado, me tremi todinho por dentro, não conseguia parar as pernas, nem deixar de remexer meus grisalhos, mas sentei depois de dizer, Que é isso, Dona Stela, a senhora é muito ocupada. Foi quando ela me contou, sabe essa casa, esses livros todos, eu nunca tive nada, nasci num sítio pé de serra, para poder estudar, andava mais de duas léguas para ir e voltar da escola mais próxima, utilizava como caderno papel de embrulhar pão, fui estudar na cidade, de favor na casa de parentes, tão mirrada, mas dava conta de cuidar da casa, das roupas e da comida de uma família de seis. Meu pai dizia, minha filha, volte para sua casa, nós não temos muito, mas temos o bastante, não precisa passar por isso, e eu dizia, preciso papai, porque eu amo as letras. E assim, fui vivendo, me formei no magistério, trabalhei, dando aula manhã, tarde e noite, consegui trazer meus pais para uma vida mais confortável, mas, sobretudo, assumi um compromisso comigo, que ajudaria qualquer pessoa que tivesse sede de conhecimento.
Escutei aquilo e uma paz me levou a sentar na cadeira. Durante dois anos seguidos, a cadeira me ficou cativa, até o dia em que escrevi no meu caderno: Sou um letreiro, a letra é linda e agora ela também me pertence.

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