Quando
desci, desci fazendo renda. Claro que eu não sabia como fazer. Era apenas uma
descida. E eu desci, linda, fazendo renda. Desci como quem desce uma ladeira,
daquelas calçadas, assentada como se estivesse numa sela, corpo todo deriva do
vento, tão destino.
Da primeira
descida, lembro apenas o frenesi, lembro-me de meses ensimesmada num casulo,
toda fechada, ouvindo apenas o alheio do converseiro, mas não me recordo de
nenhum rendeiro mor.
Quando
desci, me sentindo tão linda, sem saber se os fios eram certos, se estava no
ritmo do mundo, apenas vi uma estranha paisagem. Era uma mulher, aliás, era uma
menina, era qualquer coisa, apenas não era da minha espécie. Olhei ao meu
derredor, a casa era velha, os caibros carcomidos, sem laje, cheiro de umidade,
cenário perfeito, para mim, perfeito.
Fui
descendo, devagar, bem devagarinho... Não queria ser destruída na primeira
vasculhada. Sabia que meu tempo era curto, mas queria deixar minha renda, como
a ofertar, para os outros, mistérios alheios.
De peça em
peça, descia lentamente, sem deixar de olhar pelos olhos que possuía, todos em minhas costas. Do telhado
para aquele chão de casa caiada.
Não sabia o
que deveria ver. Talvez meu devir fosse a cegueira, talvez...
Mas eu via,
de longe, ainda do alto, quando ela, tão pequena, chegou, como se fosse um
cachorrinho farejando, a cama de molas altas, os gatos todos peludos, a brincar
com suas peripécias, pulando, com seu cachos a acompanhar os balanços todos,
alquebrando o silêncio daquele sítio, que me disseram, fique calma, é tão
tranquilo, sua vida será longa, ali não se faz faxina, não se passa a vassoura
de milho no alto, porque o telhado só Deus alcança. Bem que eu poderia ter
ficado lá no alto, toda segura, apenas a destrinchar os mistérios das rendas.
Mas talvez
eu seja de 16 de maio. Talvez eu tenha um devir de chifres. Talvez eu queira
apenas descer, como quem desce para além da terra, a perscrutar o
além, seja fogo, seja gelo. No quente ou no frio, minhas teias iriam se
dissipar.
Mas eu nem
tinha formação, mal tinha entendido as linhas, quiçá os quiproquós todos,
debatidos muito antes da minha existência.
Apenas
desci, então, graciosa e delicada... E se pudesse dizer, com meu melhor
vestido. Mas eu era bicho e desci nua.
À medida
que minha quadrilha era trançada e eu vinha mais ao chão, vi aquela menina, que
não sabia se era moça ou mulher. Vi quando ela abriu o baú. Foi uma zuada
enorme, quando dobradiças enferrujadas, gemeram junto a ela, que segurou o
folego e olhou para fora, como se esperasse ser descoberta.
Nada se ouviu além do vento que se
aninhava junto ao pé de cajarana. Eu tinha ficado suspensa, sem descer mais um
centímetro, ela me pareceu ter ficado também.
Mas suas
mãos foram rápidas, lépidas como a desbravar o tesouro dos astecas. Surrupiou
todo seu interior e ficou horas a fio, como se o fio não dependesse de mim, a
folhear seu tesouro. Ouvia apenas, com meu olhos todos, a passagem das folhas,
uma por uma, hora por hora, como se os dias e as noites estivessem apenas ali e
nada mais fizesse falta.
Eu já não
tinha mais mãe, desde cedo aprendera que meu caminho de aranha era tecer teias.
Não sabia que havia aranhas sem todas as minhas pernas.
E ela,
aranhada, lia, livro por livro, todo aquele baú, como se o ar lhe
faltasse, como se aquela fosse uma lição eterna, e a qualquer momento, alguém
pudesse surgir por entre as janelas em trava, a dizer, menina, o que tanto você
faz.
Eu vi, quando
ela viu, seu primo, a olhar pelas brechas, seu enlace, de livros, lençóis e
redes, animada pelo tesouro todo, daquela fartura de folhas molhadas, daquilo
que ela nem sabia traduzir, quando lia, a donzela fescenina, se derretia
toda... Folhas e folhas sendo passadas em mãos, desfolhadas, até o segredado
das mil e umas noites, como a sugerir, eu vi – vi seu tesouro, vi sua fartura
toda...
Ela pulou
num salto só, desse salto, ela me derrubou. Caí sem rede de segurança, sem fio
a me segurar, e na pressa dela, no intuito de se recompor, pisou em meu
corpo, quando morri, do jeito das pequenas mortes...
Um dia
desse, ela contou isso a uma estranha. Ela não sabe, mas minha morte não foi
inteira. O fio, seja lá quem traçou, permanece vivo, e eu me recuso a morrer,
não enquanto ela lembrar...
Quando
desci, desci fazendo renda. Claro que eu não sabia como fazer. Era apenas uma
descida. E eu desci, linda, fazendo renda. Desci como quem desce uma ladeira,
daquelas calçadas, assentada como se estivesse numa sela, corpo todo deriva do
vento, tão destino.
Da primeira
descida, lembro apenas o frenesi, lembro-me de meses ensimesmada num casulo,
toda fechada, ouvindo apenas o alheio do converseiro, mas não me recordo de
nenhum rendeiro mor.
Quando
desci, me sentindo tão linda, sem saber se os fios eram certos, se estava no
ritmo do mundo, apenas vi uma estranha paisagem. Era uma mulher, aliás, era uma
menina, era qualquer coisa, apenas não era da minha espécie. Olhei ao meu
derredor, a casa era velha, os caibros carcomidos, sem laje, cheiro de umidade,
cenário perfeito, para mim, perfeito.
Fui
descendo, devagar, bem devagarinho... Não queria ser destruída na primeira
vasculhada. Sabia que meu tempo era curto, mas queria deixar minha renda, como
a ofertar, para os outros, mistérios alheios.
De peça em
peça, descia lentamente, sem deixar de olhar pelos olhos que possuía, todos em minhas costas. Do telhado
para aquele chão de casa caiada.
Não sabia o
que deveria ver. Talvez meu devir fosse a cegueira, talvez...
Mas eu via,
de longe, ainda do alto, quando ela, tão pequena, chegou, como se fosse um
cachorrinho farejando, a cama de molas altas, os gatos todos peludos, a brincar
com suas peripécias, pulando, com seu cachos a acompanhar os balanços todos,
alquebrando o silêncio daquele sítio, que me disseram, fique calma, é tão
tranquilo, sua vida será longa, ali não se faz faxina, não se passa a vassoura
de milho no alto, porque o telhado só Deus alcança. Bem que eu poderia ter
ficado lá no alto, toda segura, apenas a destrinchar os mistérios das rendas.
Mas talvez
eu seja de 16 de maio. Talvez eu tenha um devir de chifres. Talvez eu queira
apenas descer, como quem desce para além da terra, a perscrutar o
além, seja fogo, seja gelo. No quente ou no frio, minhas teias iriam se
dissipar.
Mas eu nem
tinha formação, mal tinha entendido as linhas, quiçá os quiproquós todos,
debatidos muito antes da minha existência.
Apenas
desci, então, graciosa e delicada... E se pudesse dizer, com meu melhor
vestido. Mas eu era bicho e desci nua.
À medida
que minha quadrilha era trançada e eu vinha mais ao chão, vi aquela menina, que
não sabia se era moça ou mulher. Vi quando ela abriu o baú. Foi uma zuada
enorme, quando dobradiças enferrujadas, gemeram junto a ela, que segurou o
folego e olhou para fora, como se esperasse ser descoberta.
Nada se ouviu além do vento que se
aninhava junto ao pé de cajarana. Eu tinha ficado suspensa, sem descer mais um
centímetro, ela me pareceu ter ficado também.
Mas suas
mãos foram rápidas, lépidas como a desbravar o tesouro dos astecas. Surrupiou
todo seu interior e ficou horas a fio, como se o fio não dependesse de mim, a
folhear seu tesouro. Ouvia apenas, com meu olhos todos, a passagem das folhas,
uma por uma, hora por hora, como se os dias e as noites estivessem apenas ali e
nada mais fizesse falta.
Eu já não
tinha mais mãe, desde cedo aprendera que meu caminho de aranha era tecer teias.
Não sabia que havia aranhas sem todas as minhas pernas.
E ela,
aranhada, lia, livro por livro, todo aquele baú, como se o ar lhe
faltasse, como se aquela fosse uma lição eterna, e a qualquer momento, alguém
pudesse surgir por entre as janelas em trava, a dizer, menina, o que tanto você
faz.
Eu vi, quando
ela viu, seu primo, a olhar pelas brechas, seu enlace, de livros, lençóis e
redes, animada pelo tesouro todo, daquela fartura de folhas molhadas, daquilo
que ela nem sabia traduzir, quando lia, a donzela fescenina, se derretia
toda... Folhas e folhas sendo passadas em mãos, desfolhadas, até o segredado
das mil e umas noites, como a sugerir, eu vi – vi seu tesouro, vi sua fartura
toda...
Ela pulou
num salto só, desse salto, ela me derrubou. Caí sem rede de segurança, sem fio
a me segurar, e na pressa dela, no intuito de se recompor, pisou em meu
corpo, quando morri, do jeito das pequenas mortes...
Um dia
desse, ela contou isso a uma estranha. Ela não sabe, mas minha morte não foi
inteira. O fio, seja lá quem traçou, permanece vivo, e eu me recuso a morrer,
não enquanto ela lembrar...
Perfeito!
ResponderExcluirLindo!! Jamais morrerá pq jamais esquecerei!
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