sábado, 14 de junho de 2014

O baú dos livros



Quando desci, desci fazendo renda. Claro que eu não sabia como fazer. Era apenas uma descida. E eu desci, linda, fazendo renda. Desci como quem desce uma ladeira, daquelas calçadas, assentada como se estivesse numa sela, corpo todo deriva do vento, tão destino.

Da primeira descida, lembro apenas o frenesi, lembro-me de meses ensimesmada num casulo, toda fechada, ouvindo apenas o alheio do converseiro, mas não me recordo de nenhum rendeiro mor.

Quando desci, me sentindo tão linda, sem saber se os fios eram certos, se estava no ritmo do mundo, apenas vi uma estranha paisagem. Era uma mulher, aliás, era uma menina, era qualquer coisa, apenas não era da minha espécie. Olhei ao meu derredor, a casa era velha, os caibros carcomidos, sem laje, cheiro de umidade, cenário perfeito, para mim, perfeito.

Fui descendo, devagar, bem devagarinho... Não queria ser destruída na primeira vasculhada. Sabia que meu tempo era curto, mas queria deixar minha renda, como a ofertar, para os outros, mistérios alheios.

De peça em peça, descia lentamente, sem deixar de olhar pelos olhos que possuía, todos em minhas costas. Do telhado para aquele chão de casa caiada.

Não sabia o que deveria ver. Talvez meu devir fosse a cegueira, talvez...

Mas eu via, de longe, ainda do alto, quando ela, tão pequena, chegou, como se fosse um cachorrinho farejando, a cama de molas altas, os gatos todos peludos, a brincar com suas peripécias, pulando, com seu cachos a acompanhar os balanços todos, alquebrando o silêncio daquele sítio, que me disseram, fique calma, é tão tranquilo, sua vida será longa, ali não se faz faxina, não se passa a vassoura de milho no alto, porque o telhado só Deus alcança. Bem que eu poderia ter ficado lá no alto, toda segura, apenas a destrinchar os mistérios das rendas.

Mas talvez eu seja de 16 de maio. Talvez eu tenha um devir de chifres. Talvez eu queira apenas descer, como quem desce para além da terra, a perscrutar o além, seja fogo, seja gelo. No quente ou no frio, minhas teias iriam se dissipar. 

Mas eu nem tinha formação, mal tinha entendido as linhas, quiçá os quiproquós todos, debatidos muito antes da minha existência.

Apenas desci, então, graciosa e delicada... E se pudesse dizer, com meu melhor vestido. Mas eu era bicho e desci nua.

À medida que minha quadrilha era trançada e eu vinha mais ao chão, vi aquela menina, que não sabia se era moça ou mulher. Vi quando ela abriu o baú. Foi uma zuada enorme, quando dobradiças enferrujadas, gemeram junto a ela, que segurou o folego e olhou para fora, como se esperasse ser descoberta.

Nada se ouviu além do vento que se aninhava junto ao pé de cajarana. Eu tinha ficado suspensa, sem descer mais um centímetro, ela me pareceu ter ficado também.
Mas suas mãos foram rápidas, lépidas como a desbravar o tesouro dos astecas. Surrupiou todo seu interior e ficou horas a fio, como se o fio não dependesse de mim, a folhear seu tesouro. Ouvia apenas, com meu olhos todos, a passagem das folhas, uma por uma, hora por hora, como se os dias e as noites estivessem apenas ali e nada mais fizesse falta.

Eu já não tinha mais mãe, desde cedo aprendera que meu caminho de aranha era tecer teias. Não sabia que havia aranhas sem todas as minhas pernas.

E ela, aranhada, lia, livro por livro,  todo aquele baú, como se o ar lhe faltasse, como se aquela fosse uma lição eterna, e a qualquer momento, alguém pudesse surgir por entre as janelas em trava, a dizer, menina, o que tanto você faz.

Eu vi, quando ela viu, seu primo, a olhar pelas brechas, seu enlace, de livros, lençóis e redes, animada pelo tesouro todo, daquela fartura de folhas molhadas, daquilo que ela nem sabia traduzir, quando lia, a donzela fescenina, se derretia toda... Folhas e folhas sendo passadas em mãos, desfolhadas, até o segredado das mil e umas noites, como a sugerir, eu vi – vi seu tesouro, vi sua fartura toda...

Ela pulou num salto só, desse salto, ela me derrubou. Caí sem rede de segurança, sem fio a me segurar, e na pressa dela, no intuito de se recompor, pisou em meu corpo, quando morri, do jeito das pequenas mortes...


Um dia desse, ela contou isso a uma estranha. Ela não sabe, mas minha morte não foi inteira. O fio, seja lá quem traçou, permanece vivo, e eu me recuso a morrer, não enquanto ela lembrar...


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