quinta-feira, 26 de junho de 2014

Jogos da Copa



Eles tinham vindo de longe. De muitas serras além. Não que precisassem escalar nenhuma altura ou trouxessem na sua mala cordas, pinos ou alavancas. Era um grupo festivo, trazia apenas as gargantas secas e a vontade de engolir o mundo. Se reuniam, religiosamente, no altar de Baco, como a celebrar a vida, se juntando a outros, que ali já estavam. A cidade tinha sido escolhida a esmo, uns pensavam, outros, munidos de seus aparelhos rastreadores, não, sabiam que naquela pequena cidade, encravada por entre montes, em que o vento tinha que pedir passagem, e chegar de mansinho quando o sol se punha, a oferta e a procura pareciam se dar as mãos.

Eram ainda jovens, quando ali botaram morada, fincavam chão, levantaram teto e construíram famílias. As famílias que eles formaram sabiam da devoção sagrada de cada um deles e, por isso, não eram empecilhos para os ritos, cotidianamente, prestados entre eles. E se empecilhos fossem, eram deixados de lado. Era preciso celebrar a vida.

O curioso de todos eles é que a celebração acabou por tornar-se a própria vida. Um deles, em depoimento, ansioso, sempre dizia - tenho que ir bater o ponto, mas chego já. O templo escolhido era na recém inaugurada praça. Lá, improvisaram, na alegria que era costumeira, banheiros para se aliviarem, sombras para os dias mais quentes, um pendura para os dias sem espécie, afinal, tinham vindo de longe e o importante mesmo eram estarem juntos. 

   Era um bando ruidoso, cheio de gargalhadas, cuja (anti)monotonia era engolfada com a mesma voracidade daquele espetinho duro que acompanhava os goles todos. Era um belo grupo, grande em sua formação e grande em sua hospitalidade. Os que viam de longe, não compreendiam como havia tanto a se dizer e a compartilhar. Mal sabiam os transeuntes que eles trocaram de pele uns com os outros. Que eram uma tribo, um coletivo, sem papéis pré-determinados e sem as regras hierárquicas. Se viam todos iguais, e assim como riam um do outro, numa alegre comemoração, aprenderam também a rir de si mesmos, compartilhando as piadas intimas.  

Assim, foram-se os anos. Foram-se décadas. Os filhos cresceram, algumas das companheiras foram embora, uns enviuvaram. Outros ficaram órfãos. Muitos perderam seus empregos. Mas a festa continuava, era isso que lhes permitiam se sentirem vivos. As conversas e as rinhas só não caducavam, porque eles sempre lembravam-se de esquecer e assim, reatualizam as histórias todas. Tinham sempre um repertório completo delas, como se fossem autores de literatura feminina, o mote era o mesmo, apenas cruzavam as personagens, misturando situações, etnias, valentias e outros retalhos.

O templo estava sempre aberto, o coração era grande, sempre cabia mais um - era o lema. Alguns permaneciam um tempo, como a desejar aprender a rir também, numa risada conjunta, espantando os fantasmas, espanando a pasmaceira, como se ali, através das risadas e da melodia dos goles, existisse uma heroína desativada, sem o perigo das agulhas infectadas. Alguns iam embora, se sentindo fartos de celebrar a vida. Os outros transformavam a ida em fuga, na mesma cadência de uma piada – só os fortes e os crentes permanecem, era o olé da tribo.

Mas eles também falavam de suas famílias, daquelas que permaneciam em casa, à espera do fim dos ritos. Era famosa a história, nunca esquecida, quando um deles, narrava para todos, que já tinham ouvido e para aqueles que estavam ali pela primeira vez, a história de sua filha – dia desses, minha bichinha, foi num centro atrás de espíritos pedindo ajuda para eu deixar o templo. Ela foi várias vezes, até que os espíritos disseram, como se tivessem ouvido o recado de mim, minha bichinha, tem jeito não, desista – no que ele comemorava, pedindo mais um vinho, como se só assim, pudesse engolir a própria piada.

Entre eles, tinha um que era atleta. E sempre que entrava em regozijo partia para casa numa carreira desabalada. Parecia que as rezas todas eram o combustível necessário para tamanha façanha. Um outro, gostava de jogos. Levava baralho, tabuleiro, dominó... até que as telas saíram das casas e ocuparam outros ambientes. No templo, tinha uma grande, plana, com os canais especiais, que passava de tudo, luta, futebol, basquete, tênis, só não havia espaço para as novelas. As novelas, diziam eles, já bastam as nossas, enquanto continuavam celebrando.

Num dos encontros casuais, ocorreu algo inusitado. Apareceu no meio deles um rapaz garboso, talvez uma década e meia mais jovem, todo alinhado, sorriso perfeito, gestos teatrais, corpo de bailarino, pedindo para se juntar com eles na mesa central. Alguém puxou uma cadeira, fique à vontade. Ele não disse muito quem era nem de onde teria vindo. Mas também nem foi necessário. Logo foi incorporado pela onda de alegria. É verdade, que alguns ficaram ensimesmados, apenas consigo mesmo, se posso usar da redundância para melhor visibilizar a entrada de tal elegante intruso. O sorriso perfeito de dentes alvos, fez alguns lembrarem do riso de agora já destorcido. O corpo, rijo, também trouxe lembranças para os dias das carreiras dadas nos jogos de pelada. O cabelo, solto e brilhante, incomodou aqueles já acostumados com os bonés da vida. Mas nem por isso, ele foi rejeitado. Não quando propôs, quase em seguida, esse jogo, quem vai ganhar? Alguém topa uma aposta?

Parecia que naquela mesa tinha um maestro a deixar rolar os ritmos das batucadas. Foi cerveja, cachaça, vodka, riso, espetinho, cigarro, recordando a todos das antigas reuniões. O intruso, sacou lápis e um caderno do bolso de sua calça e começou a anotar os bolões. E assim, o rito se atualizou numa outra velocidade.

A harmonia foi tão sincronizada que já brindavam pelos jogos que iriam ocorrer no campeonato mundial de futebol. Parecia que o templo precisaria alargar seus limites. Até que veio o primeiro dos jogos. Brasil x Croácia. Alguns perderam, outros ganharam tostões. Tudo acompanhado e marcado por ele, que todos já chamavam de Bookmaker. No segundo dos jogos, todos já estavam presentes. Aliás, não todos. Um deles tinha viajado, como as viagens de antigamente, vestido no paletó de madeira. Brindaram pelo companheiro que se foi, quase conseguiram fazer um minuto de silêncio quando a notícia chegara, mas o jogo deu início e logo a torcida habitou os últimos segundos.

Sempre depois dos ritos, poucos conseguiam lembrar da linearidade dos acontecimentos. Era o mote de outra reunião. Entre o esquecimento de um e o flash de outros, conseguiam montar um surrealista mosaico dos dias anteriores. Mas a lembrança mais arraigada era sempre recoberta tão logo pesava sobre a mesa.

Bookmaker, então, propôs, sorrindo do jeito deles, brindando da mesma forma, posando para as fotos, que futuramente seriam compartilhadas na rede, uma nova aposta, como se a natureza, vida e morte, se naturalizasse assim, entre perdas e ganhos - aposto que no próximo jogo João pega o bonde e viajará também. O jogo então virou outro. E para cada jogo, a aposta era sobre a presença ou a ausência de um. Que coisa mórbida, um ainda arriscou, quando outro disse, deixa de ser besta, sabe jogar não?

O Brasil teria ainda seis partidas pela frente. Afinal, era a Copa do Mundo. E seis foram anotados, como se cada um dos nomes dispostos no alinhamento daquele caderno obedecessem a mais estranha lógica daquela vida em tribo. Ocupados que estavam em tal jogo, realinharam seus próprios times. Como se o time fosse um 'time', diziam, rindo dos ingleses. A única certeza era que todo jogo se encerra. Bookmaker, não era de dar palpites, mas entre um drible e outro, resolveu abrir o jogo, quando disse, eita gota, não sou a camisa dez, mas nunca perdi uma partida, sou o artilheiro de todos os tempos, já me chamaram até, num livro qualquer, de indesejada das gentes.

Se entre eles tivesse um bom entendedor ou quiçá algum leitor, talvez o jogo virasse. Talvez...



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