quinta-feira, 19 de junho de 2014

V-IVO


O ar era rarefeito. Competia com as gotículas coloridas que eram irradiadas pelos velhos aparelhos suspensos na cúpula daquele bar. Dois contos, um trago. Cinco contos, três tragos.

Enquanto ele mijava um sem número deles, balançava a cabeça, como a espantar a fedentina toda. Ou quem sabe, o embotamento. A vizinhança não era das melhores. As vitrines vivas, recheadas dos corpos-cibernéticos, pareciam convidar a um lugar de fatal. Uma tal fatalidade. Mas ele parecia imune, como se nem ali estivesse.

Do primeiro dos bares, fez as vontades, perdendo as contas que trazia no calce da bota. Quem o olhasse de perto, saberia, rapidamente, que ele era um estrangeiro, ainda que aquela terra fosse de outsiders.

A casaca, apesar do desgaste, não tinha as marcas do corpo que recobria. O porte, indiferente, parecia indicar caminhos outros, pois a pele era por demais curtida, como se o sol, já esquecido pelos daquelas órbitas, tivesse pincelado seus orifícios, dando uma inusitada coloração, mesmo ali, onde a penumbra cuidava de tornar tudo mais belo.

Enquanto ele coloca perna sobre perna, uma mão lhe enlaçou o pescoço. Vinte contos e você come meu cú quadrado. A mão que o enlaçara era mais longa do que qualquer um pudesse pressupor. Vinha da extensão de um beco, saída como se esvai a língua de um lagarto ou um bote de uma víbora.

Meu amor, disse o braço estendido, ainda enroscado nele, consigo lhe fazer uma chupeta enquanto você enquadra em mim.

Ele balançou o pé, como a mensurar os contos de sua bota. O peso daria de sobra. Acionou a membrana ótica enquanto registrava o escuro do fim do mundo. Nada em seus registros internos, cujo acúmulo seria a fortuna de uma colônia inteira, lhe deram qualquer sobreaviso.

O braço sentiu seu desconforto, como se de repente aquela indumentária toda o tivesse desnudado finalmente. Enroscou mais um pouco... e ele lembrou dos antigos arquivos, que tinha visto ainda na idade impúbere, do gato de Alice. E assim, o seguiu, tal como a menina atrás do seu coelho, em busca de fofuras e de pelos, pensando ainda, por que não? Nunca comi um cú quadradro.

O braço que anteriormente fora em busca de sua gola, o trouxe para perto. As gotículas aumentaram de ritmo, como se fossem milimetricamente dispostas naquele ambiente, tão desregrado.

Ele lembrou que antes de adentrar, traçado que estava pelo braço, olhou de um lado e registrou, numa piscada, o congelamento do momento, como se a posteridade, da polícia, o fosse agradecer.

Seus olhos já tinham feito o melhor dos upgrades todos. Por isso, foi seguro, seguro pelo braço torneado, longo, de pelos dourados, cujas unhas, estranhamente, eram esmaltadas de rubi.

Assim que foi puxado para aquele estreito beco, recebeu nos seus dispositivos todos os toques de segurança. Mas ele já não ouvia. Parecia estar enfadado de tanta informação, de tantas cifras, de tantos algoritmos. E assim, ignorou tudo que lhe parecesse vir do olhar e do ouvir, sem deixar de recordar do sorriso dado, quando seu gerente, todo espantado, lhe interrogou, tão educadamente, como se manda a lei da robótica, senhor, o senhor tem certeza que deseja carregar todos esses pesos...

São apenas contos, ele respondeu, ávido de histórias. Mas entre o registro, que foi largamente midiatizado e o momento em que permitiu ser engolado, apenas lembrou de sua urgência e do prazer de sair do sol, quando subiu no táxi lunar, lotado de corpos suados, engraxados, autóctones, mecânicos, como se a hierarquia tivesse se carnavalizado. Carne. Máquina.

Assim que ele entrou naquele beco escuro, quis tirar sua bota e entregar os contos exigidos. Mas o braço o ignorou completamente e  a toda aquela vontade de maestria, dando outro ritmo, um ritmo acostumado de garoa ácida e de vida de becos.

Febrilmente, o despiu daquela vestimenta que não lhe pertencia, deixando-o em pele. Absolutamente nu. O ar que o rodeou, parecia reiniciar um velho aparelho há muito esquecido. As engrenagens de sua carne arrepiaram seus folículos e se ele tivesse optado por ser bio-feminino, teria se molhado todo, com o sumo descendo pelas coxas. Mas não foi o sentido. Sentindo seu corpo rijo, como se seus poucos pelos, ainda existentes, em função de sua inconformidade, apontassem para o céu, se o céu ali existisse.

O braço tinha uma boca e ele o abocanhou como se fosse um encaixe milenar. O desejo dele era apenas meter, já se despedindo do redondo do seu mundo, enquanto ansiava pelo cú quadrado.

Ali mesmo sentiu a verdade das máquinas. Sentiu também o clamor dos tambores. Eu quero meter em você, quero seu cú quadrado. O braço, então, subiu pelo torso, como se desenhasse uma profecia, chegando junto à sua orelha, como um liquidificador enguiçado, sussurrando, você jamais se encaixaria.

Assim, ele gozou e se foi, rendido na mão, daquele braço todo registrado. Mas havia apenas o braço, nenhum outro indício. Foi caso arquivado, o único em séculos, pela ausência da prova dos tempos, como se o tempo, assim como os braços e abraços, estivessem para além de qualquer geometria.


Eu, por um lado, apenas observo, sou o Vigia, mas já cansei de punir. Estou entre as estrelas e as altitudes todas. Apenas registro. Talvez os outros, o Destino, o Acaso, a Vida e a Morte, queiram, um dia, conversar. E, por isso, registro.

3 comentários:

  1. arrepiei com o título.... e com o registro... o primeiro...

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  2. 'São apenas contos, ele respondeu, ávido de histórias. Mas entre o registro, que foi largamente midiatizado e o momento em que permitiu ser engolado, apenas lembrou de sua urgência e do prazer de sair do sol, quando subiu no táxi lunar, lotado de corpos suados, engraxados, autóctones, mecânicos, como se a hierarquia tivesse se carnavalizado. Carne. Máquina." Cada dia fica mais apurada e mais bela a tua escrita, nem posso mais estudar Deleuze com vc, vc já o incorporou, rsrsrsrs. Ivo amaria, eu acho

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