terça-feira, 17 de abril de 2012

Carta



Falei rapidamente com você ao telefone. Anunciei que havia tido um sonho e que esse tinha sido doce, como um chocolate apimentado ou como uma tequila desaquecida num gole de cerveja. Quente e refrescante. Porém, você estava ao telefone, guiando entre afazeres, quando me disse apressadamente: - Escreva seu sonho.

Nunca tive presteza com as palavras, pois elas me fogem sempre que vou ter a chance de vê-lo ou ouvi-lo, na sua voz ritmada, pausadamente trêmula, que continuamente anuncia, com tanta delicada firmeza, gostar da mudez.

Como tagarelar, então?!  E apenas tagarelo, tagarelo e tagarelo tanto que a ocasião se aproxima do burlesco, principalmente, quando ao me olhar de volta, seus olhos sorriem, com a tolerância que, aparentemente, lhe é peculiar.

Como sempre, me perco em arrodeios. E não falei do meu sweet dream. Nele, estávamos desnudos e arfantes. E tontos, não sei se das cervejas ingeridas ou se da estranheza do encontro. Como todo sonho, esse me pareceu surreal, como se dentro da doçura dele, soubesse que não estávamos dormindo ou tampouco acordados.

Não houve diálogos, mas essa não era a tal estranheza, pois quando falávamos dos compostos químicos, da ecologia do mundo, da globalização e do quiproquó dos dias, o silêncio nunca fora uma problemática. A mudez sempre vinha quando estávamos flutuando no ar e a paisagem surreal construía esse mundo de expectativas, em que íamos desfolhando os estágios da consciência (?) ao mesmo tempo em que, na secura do silêncio, vinha à liquidez dos toques, das experimentações.

Não sei se era essa a carta que você espera ler, pois queria apenas lhe falar do doce sonho que vivi em algumas horas, talvez em instantes, talvez em anos, tão simultâneo como meus flashbacks, meus desejos e a própria vida, em seu eterno, e surpreendente, vir a ser.

E nesse introito todo, minha timidez não me deixa narrá-lo, com os pormenores de uma escrita afetada, ainda que o viva em secretas reminiscências. Mas...

Que sua noite, ao descer sobre seu corpo, venha como uma caixinha de sonhos, daquelas recheadas de doces.


Londres, agosto de 1983.
Ps.
Either way, I don't wanna wake up from you.  
(Turn the lights on) – Eurythmics.
   

Um comentário:

  1. metáforas da vida, olhares possíveis ao que se viu, pensou, sonhou ou viveu... as cartas, escritas assim, multiplicam os sentidos da existência (e qtos sentidos)!! :D

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