quarta-feira, 4 de abril de 2012

Recalques



Já tinha um tempo que ele me deu alta, apesar de não estar tão em alta assim.  Como tudo aquilo que me motivou a buscá-lo, cinco anos atrás, me senti dividida, entre o atestado de poder me ir e a vontade de ainda ficar. Ele, com seus óculos aros de tartaruga, suas têmporas grisalhas e sua meia-barba, me passava tanta sabedoria, que parecia poder me dizer como viver, novamente, minha vida. Mas fui... Fui-me daqueles encontros semanais, religiosamente aguardados, furtados e, porque não, cabulados. Ele era a minha consciência ou como gostava de pensar sorrindo, meu inconsciente.

Primeiro veio um telefonema: - sinto sua falta, amiga! Podemos degustar um velho malte? Vamos marcar uma saída, era a proposta.

Amiga?! Quando nos tornamos amigos? Inquieta, ainda que me sentisse promovida, afinal já não era mais uma vaga em sua agenda, mas uma companhia desejada. Bom, nunca nego um convite a um querido. Marcamos para o domingo, era então uma quarta-feira, dessas sem grandes novidades.

Segundo veio uma mensagem ao celular: - Conto os minutos e as horas para que a semana se finde. Será um “domingo de sol”! Disse em meio a uma paráfrase musical. Dancei ao ler. Reli, rebolei mais um tanto. Repeti o dito em voz alta. Queria tornar concreto, enxugar terceiras ou quartas intenções, queria a frieza de quem procura a semântica do texto e não suas dobras interpretativas.

Ele sempre me alertou dos meus desejos, dizendo, bobagens, enquanto fazia meneios e seus fios de prata se tornavam fios de luz. O corpo deseja, não se reprima, já foi... E assim saia confortada das minhas sessões de terapia. E agora? Será? Pode um encontro entre "amigos" ser tão nervoso? Afinal, não nos víamos há mais de dois anos. Ele, que ao me dar alta, foi velejar por terras alheias. Ora, esqueçamos, pois. O levarei para meu canto preferido, aquele bar em frente ao mar, resguardado da areia, do sol e do vento. Me sentirei protegida como se sentem aqueles que se sentam nas suas mesas, tendo o mar à frente, ainda que seus toques estejam ao longe. Seria isso que eu desejava? Tê-lo a minha frente, sossegada pelas vindas e idas dos garçons, dos burburinhos das mesas cheias, do tilintar dos copos... Tão perto e tão distante do mar, com seu cheiro de maresia, com sua areia quente e os ventos fortes. Ele que sempre me trouxe cheiro, calor e força. Ele que agora significa esse meu mar.

Ele não sabe, mas eu o temo. Mas nem sempre foi assim. Costumava mergulhar, desavisada das marés, emergindo meu corpo em ondas. Fui uma garota de praia, hoje sou uma mulher de quartos. Entrei no meu quarto por medo das minhas ressacas, por meio das ressacas que o mar trazia a mim. O mar foi sendo visto ao longe, assim como olhava para meu passado, todo recalcado nas minhas gavetas, dessas que a gente se nega a fazer faxinas. Meu biquini já desbotado, não pelos usos, mas pela sua inutilidade, tornado um souvenir.

Mas um dia o mar me banhou, começou com a chuva que caia em grossos pingos quando eu voltava ao meu lar. Molhada, mergulhei. E por isso o procurei, toda encharcada pelos banhos tomados. Tive medo, pois o biquini não cabia mais no meu corpo, o mar já tinha virado uma bela paisagem a ser vista da proteção do meu apartamento e, ainda assim, eu ouvi o seu chamado. Era uma tempestade.

E foi por ter medo das paisagens que se constrói depois das tempestades que o procurei. Procurei a ele que hoje me fala de dias ensolarados com tanta ênfase, com tanta musicalidade. Procurei a ele que por anos ouviu sobre a garota de biquini e sobre a mulher das vistas amplas. Falei dos meus medos, do biquini rasurado, da força das ondas, da minha falta de fôlego... Falei de quando, sentada na areia, a onda veio e banhou meu pé, minha perna, meu tronco, meu pescoço e minha cabeça, sendo eu mesma o mar. Deitada, a onda me submergiu como há muito não fazia e com tal força que me fiz sereia. E ele, enquanto me ouvia, suspirou fundo, como se o mar também o tivesse coberto. Foi um daqueles suspiros profundos, de quem ao sair da submersão procura um fôlego de vida, depois de uma pequena morte. E mar, como eu estava, desejei que em mim ele mergulhasse.

Essa imersão transferencial marcou a onda que me levava a ele. E agora ele me chama para ver um domingo de sol, embalado pelo mar. Não que eu tenha restaurado o biquini, não que eu tenha perdido o medo dessas insolações, não que eu tenha perdido o gosto pelas ondas, mas ainda não estou segura da cadência das minhas braçadas e da arte de boiar e ver o céu.

Mas sei que do mar não posso mais fugir. Estou indo encontrá-lo.

2 comentários:

  1. impossível fugir do mar e dos mergulhos intensos!! que venham os próximos (narrados aqui, please)!! ;)

    ResponderExcluir