Aquela era a manhã do dia que traria mil naufrágios e novas ilhas. E eu,
ainda ancorada, pensava apenas no peso do pernil no forno, no terceiro conserto
do carro, no perigo iminente dos fogos de artifício – sem saber que eles
arderiam, naquela noite, mais em mim que nos ouvidos dos cães.
Era tarde quando cheguei na casa que já me vira em festas outras, com
mulheres outras, e com tristezas várias. Cheguei sem saber que aquela era a
noite que me levaria a novas ilhas, mil naufrágios. Rápida, o pernil imenso na
assadeira felizmente encobrindo meu rosto que teme tanto ser visto, atravessei
a sala evitando ainda saber quem estava ali. E a voz familiar me diz “por que tão tarde?”. Eu, na resposta
constrangida, digo algo tolo sobre o pernil e meu embaraço, que ninguém nota,
cresce e cresce.
Eu nunca a via. Nunca só. Ou melhor, uma ou duas vezes, talvez no
supermercado, e eu sempre hesitante, temendo um oi que não teria retorno, ou um
olhar que demonstrasse sua total falta de familiaridade com quem eu sou. Quem
eu sou? Quem eu era, ali? E eu não sabia que era ela que me levaria a novos
portos quando me apresentou a alguém, na festa, falando sobre meu humor ácido.
Não gostei da acidez, eu que planejo doçuras, e tentava entender onde o erro,
onde a força escondida das palavras que digo sem saber. De novo fora de mim,
faço outro comentário, monotemático, sobre como ela deveria mesmo era ficar com
C. Num canto da cozinha, depois, ela me pergunta por quê. Por quê C. ? Por que
eu deveria estar preocupada com C? Porque eu desejava por alguns instantes que
o tempo se voltasse sobre si mesmo e eu pudesse recomeçar, sendo séria e doce e
não ácida, e que não falasse tantas bobagens de forma compulsiva apenas porque
aquele silêncio (ela sempre foi a pausa entre as notas) me pesava como devem
pesar as patas dos centauros. E nesse tempo espiralado eu não seria eu e nem
teria âncoras de séculos, e poderia então desejá-la como eu mesma e não através
das possibilidades de C.
Mas mesmo então sem ser outra, sendo eu,
com esse sorriso torto, eu digo o que não se diz, na expectativa de que
minha boca de seriedade e riso pela metade pudesse ser ali a possível contenção
da águas, aquilo que impedisse o desejo – aquele mesmo que se instaurara quando
eu disse “gostosa” – de virar o rio que varreria com violência as margens e as
tornaria férteis pra sempre. Mas eu disse. E o meio sorriso nada pôde contra
aquilo que se desenhara tão precisamente com as palavras.
Outras, em seguida, sussurradas (ela é toda silêncios, já disse?) perto
da minha nuca, me fizeram ouvir o rangido das âncoras sendo arrancadas. Era o
mar, o rio, começando me levar àquelas outras ilhas. Um naufrágio de quem eu
pensava ser, outro naufrágio de onde eu pensava estar.
O resto da noite, xadrez
interminável. A Torre (que, eu não sabia, ainda, viria a ruir).Os olhos se
cruzando no jogo. As palavras se cruzando, em conversas sobre redes – ela,
parte do tempo, numa rede em que eu a via em intervalos oscilantes.
Eu queria não ser eu. O tempo – serpente devorando o próprio rabo, me fazia
inventar teses, teorias, desejos de um futuro que não era o meu, mas que a
faziam falar. Ela, cheia de silêncios, me olhava atenta, e falava outras teses
e teorias que eu devia ler. Entre nós, então, se tecia um começo. E prometíamos
ambas mais e mais palavras, pensando de fato que as frases podem ter mãos,
dedos, boca, língua, e que nos tocávamos através delas. Meu desejo a tocava
entre sílabas, entre as frases improvisadas que anunciavam outras tantas que
nos diríamos ainda, pela vida (ou mar) adentro.
Como agora.
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presente. não aquele momento de tempo entre
o passado e o futuro. presente, algo que se ganha em alguma ocasião – especial
ou não. talvez esse seja o ponto de partida. presente de crispina – um desses
seres que pode habitar apenas a nossa imaginação. nesse caso, uma êre. presente
anunciado nas semanas finais de 2011. sequer imaginei o que poderia ser.
o presente insuspeito veio na passagem do
ano: chegou com 2012. na forma de uma emoção inesperada. daquelas que chegam
sem avisar, alteram os trajetos e mudam os planos.
festa de réveillon. já estou um pouco alta.
animada, com as amigas mais próximas por perto. mas com a sensação de que
faltava ainda t. chegar. amiga? não exatamente. até, então, alguém que tinha
encontrado 2 vezes, apenas. mas que, por essas coisas inexplicáveis, gostava de
encontrar. apesar da inquietação e da falta de palavras que me tomava ao
encontrá-la. supunha ser pq sua sagacidade, humor e velocidade de pensamento me
faziam parecer boba.
- “pq só chegou agora?” (perguntei, como se
houvesse intimidade suficiente para tal questionamento)
- “eu atrasei, mas trouxe o pernil, tá?”
hum?! (pensei: o que o pernil tem a ver com
isso... com a vontade de te reencontrar)
a festa segue animada. fumo um pouco, danço
outro pouco, acompanho os movimentos de algumas pessoas até que t. vem
conversar comigo (sim, não conseguia ‘puxar’ muito assunto com ela, aquela
sensação de se sentir idiota falando com alguém interessante, inteligente e
sagaz). me pergunta algo sobre namorada: se estou namorando, se ‘peguei’ minha
professora de ioga, pq não namoro uma amiga em comum. respondo a tudo – quase
formalmente – até que interrogo, pq raios ela insiste que eu namore nossa amiga
em comum.
- “pq?” – diz ela – “pq te acho uma gostosa
e se não fosse casada, te pegava”. e saí. pra variar, fiquei sem palavras.
cérebro já levemente lento, pelo álcool, penso: “mas que cantada barata”. tarde
demais, a cantada barata no meu ouvido se fez acompanhar de reações inesperadas
no meu corpo: aquele arrepio que percorre a espinha, acompanhado do frio na
barriga e acelerar dos batimentos cardíacos.
preciso dizer que não pensei em mais nada,
depois disso? estaria mentindo, pensei e muito: em como retribuir a “cantada
barata”. hum, só com outra.
na primeira oportunidade, colei minha boca
em seu ouvido, pra dizer: “adoraria fazer yoga contigo”. ah, e a vontade de rir
ante a surpresa nos olhos dela... até o final da festa, pude captar pequenos
detalhes: seu jeito de dançar (os movimentos do corpo mesclados ao olhar), as
mãos pequenas (como gosto), a voz deliciosa e envolvente...
sequer poderia imaginar os próximos
movimentos...
***
Ps. As personagens emergiram do texto e
deixaram suas próprias marcas. E que belas, são essas marcas.
:)
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