terça-feira, 10 de abril de 2012

Short cuts ²


Aquela era a manhã do dia que traria mil naufrágios e novas ilhas. E eu, ainda ancorada, pensava apenas no peso do pernil no forno, no terceiro conserto do carro, no perigo iminente dos fogos de artifício – sem saber que eles arderiam, naquela noite, mais em mim que nos ouvidos dos cães.

Era tarde quando cheguei na casa que já me vira em festas outras, com mulheres outras, e com tristezas várias. Cheguei sem saber que aquela era a noite que me levaria a novas ilhas, mil naufrágios. Rápida, o pernil imenso na assadeira felizmente encobrindo meu rosto que teme tanto ser visto, atravessei a sala evitando ainda saber quem estava ali. E a voz familiar me diz  “por que tão tarde?”. Eu, na resposta constrangida, digo algo tolo sobre o pernil e meu embaraço, que ninguém nota, cresce e cresce.

Eu nunca a via. Nunca só. Ou melhor, uma ou duas vezes, talvez no supermercado, e eu sempre hesitante, temendo um oi que não teria retorno, ou um olhar que demonstrasse sua total falta de familiaridade com quem eu sou. Quem eu sou? Quem eu era, ali? E eu não sabia que era ela que me levaria a novos portos quando me apresentou a alguém, na festa, falando sobre meu humor ácido. Não gostei da acidez, eu que planejo doçuras, e tentava entender onde o erro, onde a força escondida das palavras que digo sem saber. De novo fora de mim, faço outro comentário, monotemático, sobre como ela deveria mesmo era ficar com C. Num canto da cozinha, depois, ela me pergunta por quê. Por quê C. ? Por que eu deveria estar preocupada com C? Porque eu desejava por alguns instantes que o tempo se voltasse sobre si mesmo e eu pudesse recomeçar, sendo séria e doce e não ácida, e que não falasse tantas bobagens de forma compulsiva apenas porque aquele silêncio (ela sempre foi a pausa entre as notas) me pesava como devem pesar as patas dos centauros. E nesse tempo espiralado eu não seria eu e nem teria âncoras de séculos, e poderia então desejá-la como eu mesma e não através das possibilidades de C.

Mas mesmo então sem ser outra, sendo eu,  com esse sorriso torto, eu digo o que não se diz, na expectativa de que minha boca de seriedade e riso pela metade pudesse ser ali a possível contenção da águas, aquilo que impedisse o desejo – aquele mesmo que se instaurara quando eu disse “gostosa” – de virar o rio que varreria com violência as margens e as tornaria férteis pra sempre. Mas eu disse. E o meio sorriso nada pôde contra aquilo que se desenhara tão precisamente com as palavras.

Outras, em seguida, sussurradas (ela é toda silêncios, já disse?) perto da minha nuca, me fizeram ouvir o rangido das âncoras sendo arrancadas. Era o mar, o rio, começando me levar àquelas outras ilhas. Um naufrágio de quem eu pensava ser, outro naufrágio de onde eu pensava estar.

O resto da noite,  xadrez interminável. A Torre (que, eu não sabia, ainda, viria a ruir).Os olhos se cruzando no jogo. As palavras se cruzando, em conversas sobre redes – ela, parte do tempo, numa rede em que eu a via em intervalos oscilantes.

Eu queria não ser eu. O tempo – serpente devorando o próprio rabo, me fazia inventar teses, teorias, desejos de um futuro que não era o meu, mas que a faziam falar. Ela, cheia de silêncios, me olhava atenta, e falava outras teses e teorias que eu devia ler. Entre nós, então, se tecia um começo. E prometíamos ambas mais e mais palavras, pensando de fato que as frases podem ter mãos, dedos, boca, língua, e que nos tocávamos através delas. Meu desejo a tocava entre sílabas, entre as frases improvisadas que anunciavam outras tantas que nos diríamos ainda, pela vida (ou mar) adentro.

Como agora.

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presente. não aquele momento de tempo entre o passado e o futuro. presente, algo que se ganha em alguma ocasião – especial ou não. talvez esse seja o ponto de partida. presente de crispina – um desses seres que pode habitar apenas a nossa imaginação. nesse caso, uma êre. presente anunciado nas semanas finais de 2011. sequer imaginei o que poderia ser.

o presente insuspeito veio na passagem do ano: chegou com 2012. na forma de uma emoção inesperada. daquelas que chegam sem avisar, alteram os trajetos e mudam os planos.

festa de réveillon. já estou um pouco alta. animada, com as amigas mais próximas por perto. mas com a sensação de que faltava ainda t. chegar. amiga? não exatamente. até, então, alguém que tinha encontrado 2 vezes, apenas. mas que, por essas coisas inexplicáveis, gostava de encontrar. apesar da inquietação e da falta de palavras que me tomava ao encontrá-la. supunha ser pq sua sagacidade, humor e velocidade de pensamento me faziam parecer boba.

- “pq só chegou agora?” (perguntei, como se houvesse intimidade suficiente para tal questionamento)

- “eu atrasei, mas trouxe o pernil, tá?”

hum?! (pensei: o que o pernil tem a ver com isso... com a vontade de te reencontrar)

a festa segue animada. fumo um pouco, danço outro pouco, acompanho os movimentos de algumas pessoas até que t. vem conversar comigo (sim, não conseguia ‘puxar’ muito assunto com ela, aquela sensação de se sentir idiota falando com alguém interessante, inteligente e sagaz). me pergunta algo sobre namorada: se estou namorando, se ‘peguei’ minha professora de ioga, pq não namoro uma amiga em comum. respondo a tudo – quase formalmente – até que interrogo, pq raios ela insiste que eu namore nossa amiga em comum.

- “pq?” – diz ela – “pq te acho uma gostosa e se não fosse casada, te pegava”. e saí. pra variar, fiquei sem palavras. cérebro já levemente lento, pelo álcool, penso: “mas que cantada barata”. tarde demais, a cantada barata no meu ouvido se fez acompanhar de reações inesperadas no meu corpo: aquele arrepio que percorre a espinha, acompanhado do frio na barriga e acelerar dos batimentos cardíacos. 

preciso dizer que não pensei em mais nada, depois disso? estaria mentindo, pensei e muito: em como retribuir a “cantada barata”. hum, só com outra.

na primeira oportunidade, colei minha boca em seu ouvido, pra dizer: “adoraria fazer yoga contigo”. ah, e a vontade de rir ante a surpresa nos olhos dela... até o final da festa, pude captar pequenos detalhes: seu jeito de dançar (os movimentos do corpo mesclados ao olhar), as mãos pequenas (como gosto), a voz deliciosa e envolvente...

sequer poderia imaginar os próximos movimentos...

***

Ps. As personagens emergiram do texto e deixaram suas próprias marcas. E que belas, são essas marcas. 

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